Depois de ter dito e desdito aquilo que se passava com a pandemia do Covid-19 e de ter mantido à frente das operações de combate ao vírus pessoas incapazes de dar conta do recado, a última intervenção do primeiro-ministro foi seguir o exemplo do Presidente da República ao declarar: «A culpa é minha»! Não, não é, Sr. Primeiro-Ministro. Nem sua, nem de ninguém! Essa ideia de «culpa» está impregnada na nossa linguagem e traduz um tipo de mentalidade religiosa que os próprios ateus absorvem rapidamente esperando que lhe respondam: «Não é, não senhor, não se preocupe»!

Foi isso, não duvidemos, que o primeiro-ministro pretendeu de forma a escamotear as responsabilidades do governo. Essas sim, indeclináveis sob pena de mau desempenho num momento destes. O que falta não são culpados, mas sim quem assuma as responsabilidades inerentes aos postos que ocupam na sociedade. A doença não é um castigo que alguém nos impõe. É um facto da vida cuja probabilidade aumenta com a idade e que, dadas as sucessivas revoluções científicas, tornou a saúde uma das maiores responsabilidades públicas só comparável à das reformas, de maneira a sustentar a economia, segundo Keynes.

Para um país como Portugal, que é um dos mais envelhecidos do mundo e, simultaneamente, o país europeu com mais baixa instrução, portanto com menos qualificações e produtividade, o envelhecimento demográfico constitui o nosso maior problema do qual, porém, os governos têm fugido como diabo da cruz, recusando-se a encará-lo na sua globalidade. Acresce que, em vez de abandonar o sistema de subsídios ad-hoc e de tornar transparentes as contribuições a pagar e as reformas a receber por cada um de nós, os governos mantêm um aparelho de funcionários que é dos que mais cobra com a «segurança social»!

Entre nós, a pandemia caracteriza-se por atingir mortalmente sobretudo as pessoas com 70 anos ou mais, as quais se elevavam ontem a 93% do total dos óbitos. A isso acresce, ao longo dos sete meses e meio que dura a pandemia, um «excedente de mortalidade» que a DGS não divulga mas os especialistas estimam ser semelhante ao dos óbitos registados. Enquanto finge agora «assumir a culpa» do desastre sanitário e do colapso económico, em vez de assumir as responsabilidades que lhe cabem, o governo atribui a «culpa» ao mau comportamento dos cidadãos.

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Pior: recorre a processos que devia ter implementado quando era tempo e a região industrial do Porto era já o centro da pandemia, como assinalei na altura. O primeiro-ministro falou então na necessidade de «cercar» aquela região mas cedeu à pressão do presidente da Câmara… Agora, são os mesmos municípios a sofrer com maior intensidade ainda devido às condições sócio-demográficas do Norte industrial. A tentativa de «culpar» as vítimas é típica de quem falta ao cumprimento das suas responsabilidades!

Além disso, persiste algo que nunca foi revelado e teria sido útil conhecer a fim de intervir de forma mais eficaz: é o facto de não ter sido revelado o local onde viviam as vítimas mortais da pandemia. Esse segredo não nos permite até hoje perceber aquilo que se passa desde sempre nos chamados «lares de idosos» de onde vem a maioria dos falecidos. O escândalo que esses «lares» constituem e cujo mau funcionamento agora se revelou, cá como até em países mais organizados, não só não era novidade como resultava de um acordo conhecido entre os sucessivos governos e as chamadas «instituições sociais sem fins lucrativos», nomeadamente as misericórdias, as quais está demonstrado não possuírem condições de funcionamento que justifiquem os apoios financeiros estatais.

Esta situação em que estão a fazer perder a vida milhares de idosos doentes e incapazes de se defender não só não é revelada como tão pouco são conhecidas medidas que transformem essa dimensão fatal do envelhecimento galopante do país que é a ausência de condições decentes para cuidar dessas pessoas. A evolução demográfica é conhecida e sabe-se desde já que haverá menos parentes em número e com meios para cuidar dos mais velhos, quando as gerações dos 70, 80 e 90 anos são aquelas que mais aumentam e as pessoas com 65 e mais anos são já ultrapassam 2 milhões num país cuja população está a diminuir todos os dias.

Por si só, isso responsabilizaria há muito qualquer governo que não fosse demagógico e não fizesse promessas que não pode cumprir enquanto não forem alteradas as regras vigentes de aposentações e reformas e constituído um sistema inteiramente novo. A notícia recente de que se está a esfumar o pé-de-meia destinado a pagar as futuras pensões só pode fazer tremer a população activa e responsabilizar o governo por ter usado esses recursos a fim de disfarçar os danos provocados pela má gestão da pandemia e aliciar votos para futuras eleições. Não se quer culpados; quer-se responsabilidade!