Tenho-me lembrado muito, por estes dias, do curiosíssimo caso da universidade de Evergreen, nos Estados Unidos, que deu origem a um extenso documentário cuja visão recomendo vivamente. A história passa-se em 2017, com uma série de decisões do então reitor da universidade, George Bridges, que decide introduzir várias medidas no sentido genérico de promover a equidade e a justiça social no seio da universidade. Rapidamente se instaura um clima de terror em que um reduzido número de estudantes, com o apoio de Bridges, passa a estabelecer uma espécie de ditadura sobre os seus colegas e os professores. A acusação de racismo, de culto da “supremacia branca”, pelos mais delirantes motivos, torna-se a justificação de base para toda a espécie de humilhações rituais e para um aturado exercício de auto-flagelação por parte dos professores, incluindo o próprio Bridges, sobre quem ela recai. A perseguição atinge proporções radicais. A lógica binária amigo/inimigo é levada às últimas consequências e o arbitrário e o grotesco na definição e na escolha do inimigo não tem limites. Qualquer negação de racismo por parte dos professores é automaticamente interpretada como prova conclusiva e indesmentível desse mesmo “racismo sistémico”. O grau de irrealidade naquilo que se observa atinge tais proporções que qualquer descrição que possa ser feita daquilo não passa de uma pálida cópia da loucura, não há outra palavra, do que é exibido no documentário.

Estas imagens vêm espontaneamente à cabeça de quem passe uma boa parte do tempo a ver a CNN por estes dias. Não é só, nem sobretudo, por a CNN se ter transformado numa permanente orgia anti-Trump, com a colaboração não só dos jornalistas da casa ou dos políticos mainstream do Partido Democrata, que seguem no essencial o radicalismo das suas franjas mais extremistas, como aquela representada por Alexandria Ocasio-Cortez. Não declarou recentemente Joe Biden, uma espécie de fantasma que penosamente junta algumas palavras com aparência de nexo, que se os eleitores negros “têm dificuldades em decidir se votam [nele] ou em Donald Trump, então não são negros”? Coisa mais racista é difícil de imaginar: o branco que decide quem são os “verdadeiros negros”. Fareed Zakaria, no “GPS”, elabora os mesmos temas, num registo mais sofisticado, usando e abusando do adjectivo “fascinante” – os seus convidados têm sempre ideias “fascinantes”, proporcionam conversas “fascinantes”, eles próprios são invariavelmente “fascinantes”. A CNN conta ainda com a prestimosa ajuda de políticos do passado, daqueles que mereceram no seu tempo o mais selvagem dos tratamentos mediáticos. A coisa é vulgar e até, num certo sentido, compreensível e perdoável. Com a idade, e passado o momento da acção, as pessoas tendem quase fatalmente a buscar uma forma qualquer de respeitabilidade mediática, como os velhotes que, depois de uma vida de dissipação, se tornam os mais veementes apóstolos da virtude. Nos políticos é muito frequente e quem não se lembra até de vários casos caseiros que ilustram na perfeição esta tendência? E os media correspondem alegremente, porque eles lhes são úteis, concedendo-lhes uma honorabilidade de que nunca gozaram ao tempo em que exerciam o poder.

Mas aquilo que mais lembra Evergreen na CNN são os relatos dos ataques a várias figuras públicas que, apesar de declararem o seu apoio ao Black lives matter, são julgados insidiosos representantes do tal “racismo sistémico”. Um senhor do qual nunca tinha ouvido falar, Carron J. Phillips, associava o golfista Tiger Woods ao Ku Klux Klan, acusando-o de “odiar ser negro”. Ellen deGeneres, que também havia expresso o seu apoio à causa do anti-racismo, foi vista pelos “cidadãos da net” como sofrendo de uma absoluta insensibilidade social e de flagrante hipocrisia – pensa que ouve os protestos, mas não os ouve, é tone-deaf – e forçada a difundir um vídeo lacrimoso em que assume todas as suas culpas. Roger Goodell, comissário da Liga Nacional de Futebol Americano, declarou-se também publicamente culpado pela sua insensibilidade, mas não foi suficiente. Os jogadores da Liga Nacional fizeram um vídeo em que produziam uma litania em que se repete vezes sem conta a expressão “estivemos errados”, onde procuravam mostrar a insuficiência das declarações de Goodell. Alexandria Ocasio-Cortez encontra-se na linha da frente da luta pelo desmantelamento das forças policiais. Acrescentem a isto o facto do Twitter não descartar suspender a conta de Donald Trump – uma medida que o Conselho Europeu não se encontra aparentemente longe de aprovar – e de o New York Times ter decidido não publicar na sua versão impressa um artigo de opinião, um op-ed, de um senador republicano, Tom Cotton, com muitos jornalistas da nova geração a verem na publicação do artigo uma ameaça à integridade física dos jornalistas negros, declarando-se “fartos de ouvir que devem dar conta de ambos os lados do problema quando na verdade há um só” — acrescentem isto e têm uma imagem aproximada da nova América-Evergreen.

Não sofro em nada de egoísmo lógico, do irracional desejo de ter razão contra toda a gente, e não me passa pela cabeça negar a existência de racismo nos Estados Unidos e no mundo em geral e da necessidade de o combater. Acontece, no entanto, que o fenómeno que observamos transcende em muito essas preocupações. Grande parte dos delírios colectivos contêm na sua origem uma parte de verdade substantiva. O problema aparece quando essa parte de verdade se dilui num caldeirão de arbitrário e loucura, algo que aconteceu várias vezes nos Estados Unidos. As mulheres americanas estavam justamente fartas de serem sovadas por maridos que chegavam bêbados a casa – quando se passa para a Lei Seca observa-se a transição para a loucura. As mulheres não apreciam ser assediadas e violadas por homens em posição de poder – quando o Me Too institui um sistema de regras que condena gente sem conta à ostracização e ao silêncio observa-se a transição para a loucura. Até no contexto da Guerra Fria o medo da transmissão de segredos de Estado para a União Soviética era legítimo – quando aparece o macarthismo, com a sua lista de vidas destruídas, observa-se a transição para a loucura. A presente situação entronca numa longa história.

Aqui na Lusitânia, nos confins do Império, chegam, como a muitos outros lugares, ecos desta loucura. Sábado passado, em Lisboa, no Porto, e em vários outros lugares, manifestações celebraram o Black lives matter. Num editorial do Público, Manuel Carvalho, o seu director, aplaudiu a “manifestação pela esperança”. Conviria talvez uma maior prudência. Manifestações onde se exibem cartazes como “Distanciamento social? Só se for dos fachos”, “Polícia bom é polícia morto”, “De Minnesota até ao Porto, bom polícia é polícia morto!!” e se grita em uníssono “Racista, fascista, o teu nome está na lista”, não me parecem testemunhar de um grande amor “ao humanismo e ao personalismo que são a cola da nossa vida colectiva”, para falar como Manuel Carvalho. Antes pelo contrário. O que eu vejo é, de uma forma (ainda) incipiente, a absorção dos ensinamentos de Evergreen. Da universidade para o mundo há apenas um pequeno passo que muita gente está disposta a dar.

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