Não queria passar a vida (ou as semanas) a reincidir em temas femininos, mas afinal foi o dia internacional da mulher e, na verdade, a parte feminina da população é fonte inesgotável de temas interessantes. (A masculina também.) É certo que ocorreu aquele que ficará no top 5 dos eventos mais surreais do século XXI – refiro-me, claro, a José Sócrates acusando de ‘miséria moral’ alguém que não está condenado por homicídio ou violação (facto que, pensando bem, pode ser seminal para desenvolvimentos surpreendentes no conhecimento das personalidades nascisistas e egomaníacas) – mas decidi-me a escrever sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres.
Algo inútil, claro, porque não existe. Assim várias pessoas me garantiram no twitter no dia da mulher. Ou melhor: existe mas é inteiramente explicada por fatores económicos cristalinos. A história que me foi contada reza assim: as mulheres ganham menos porque trabalham menos horas, perdem tempo de carreira em gravidezes e licenças de maternidade, depois dos filhos nascerem as mulheres são menos comprometidas com a profissão.
Está explicado, então, não é? Não, não está. O argumento das horas trabalhadas não explica a diferença salarial que permanece considerando o valor pago por hora. E tendo em conta o declínio da taxa de natalidade nos países desenvolvidos e a quantidade de mulheres que escolhe não ter filhos, não são necessárias histerias feministas para concluir que o período de interrupção na carreira das mães não será muito diferente dos períodos de interrupção da carreira dos homens com um acidente de trabalho (e os homens ocupam profissões mais propensas a acidentes de trabalho) ou um ataque cardíaco (maleita que afeta maioritariamente quem tem o cromossoma y).
(E deixemos de lado por agora outra questão titânica: havendo uma enorme necessidade de aumentar a natalidade nos países desenvolvidos (e envelhecidos) faz sentido penalizar profissionalmente as mães? As sociedades que renovam gerações são historicamente mais prósperas, com maior inovação e com maior potencial de crescimento; e as que encolhem a população têm perante si o inexorável declínio económico. Ora bem: as mulheres que têm filhos trazem à sociedade uma externalidade positiva – algo que (quando não põe alguns cabelos masculinos em pé pela ousadia feminina de reclamar aquilo que acha injusto) costuma ser financeiramente premiado (em último caso pelos contribuintes).)
Continuando com argumentos que se usam para justificar o wage gap: os homens tendem a procurar profissões que envolvam mais trabalho físico pesado, horários desconfortáveis, risco; já as mulheres preferem horários amigáveis para a vida familiar e trabalhos mais recompensadores. Por pagarem trabalhos mais desagradáveis, os ordenados dos homens são superiores. Mas, lá está, isto também não explica porque permanece a desigualdade salarial de 9% (Blau e Khan; 2007) entre sexos quando considerado o mesmo tipo de trabalho e de habilitações. Nem explica acasos célebres como o do filme Golpada Americana, onde as atrizes receberam menos 2 milhões de dólares do que os atores, apesar de a maior estrela de cartaz ser a Jennifer Lawrence (que lá por socializar com répteis não merece castigos salariais).
Há boas notícias. Uma publicação da Reserva Federal de St Louis, com dados americanos e depois de considerar as diferenças de carga horária, de qualificações, de profissão e as interrupções de carreira, apresenta um estudo que estima a diferença em 5%. E outro que, após pesar os benefícios globais (exemplo: a flexibilidade de horários, que é no fundo uma forma de compensação não monetária), coloca o gap em 3,6%.
E só mesmo as mulheres, que nunca estão satisfeitas e gostam de exterminar a tranquilidade masculina com assuntos insignificantes, podem protestar por causa de um diferencial de ordenados de uns meros 5%. Quase nada. Em vez de ficarmos satisfeitas com um gap reduzido (e nos dedicarmos ao aperfeiçoamento culinário do prato preferido dos extremosos esposos) gastamos tempo reclamando igualdade. O mundo não aguenta tal inversão da ordem natural das coisas.
É que estes cerca de 5% não se explicam se não fazendo uso do preconceito e da discriminação. Há quem aponte o dedo acusatório às descendentes de Eva por não serem aguerridas a negociar ordenados maiores. Pena é que quando as mulheres são, sofrem consequências. Tinsley, Cheldelin, Schneider e Amanatullah em 2009 e Bowles, Babcock e Lai em 2007 mostram que as mulheres que negoceiam aumentos são malvistas (mesmo pelas colegas femininas) e pagam um preço nos seus rendimentos a longo prazo. Das senhoras espera-se que sejam ladylike e aceitem ofertas de ordenado com um sorriso cativante.
Mas quando nos comportamos de acordo com o estereótipo e queremos compatibilizar trabalho e família, continuamos penalizadas. Segundo Christin Munsch, as chefias são mais predispostas a aceitar a flexibilização do horário por razões familiares se são homens a pedir e a rejeitar se são mulheres. Tal pedido, vindo de uma mulher, carrega logo o estigma de que não está comprometida com a profissão; já os pais de família são sempre adoráveis.
E a noção de que as mulheres fogem das áreas científicas e tecnológicas, que são as mais bem pagas? Pois, também são enxotadas. Ao longo de todo o percurso escolar as raparigas são prejudicadas nas avaliações de matemática e áreas científicas. Se em 2012 Moss-Racusin, Dovidio, Brescoli e Graham verificaram a discriminação no ensino superior, Victor Lavy e Edith Sand, num estudo publicado este ano, mostraram que as professoras primárias dão notas melhores aos testes de matemática das raparigas quando não sabem que são de raparigas.
Parecemos tão impregnados na certeza de que os rendimentos masculinos devem ser maiores do que os femininos que, como apurou a organização sem fins lucrativos Junior Achievement no ano passado, até as semanadas e mesadas dos rapazes são maiores do que as das raparigas.
O Nobel da economia Gary Becker – que misturava a psicologia e as dinâmicas familiares com a economia – doutorou-se com uma tese onde abordou as preferências discriminatórias no mercado de trabalho nascidas do desejo de manter o status quo social. Fê-lo a propósito da discriminação racial mas podemos aplicá-las à discriminação sexual: existe a preferência de ter o sexo masculino como detentor de maior poder económico.
Suspiremos: afinal há uma causa económica para o wage gap. É, no entanto, menos enternecedora que horas trabalhadas e gravidezes.