Quero começar por fazer aqui um elogio público à lucidez do Sr. Primeiro-Ministro. Há poucas horas – a unidade de medida adequada – veio apelar que o povo português confiasse nas autoridades da saúde. O SNS está repleto de funcionários públicos extraordinários, de grande abnegação, imensa competência, elevada resiliência e diga-se, porque não é dizer pouco a meio de uma pandemia com contornos ainda mal definidos, extrema coragem pessoal.

Este é, no que importa mais imediatamente, um caso de Saúde Pública. E nada melhor que nos entregarmos nas mãos de quem sabe. Isto porque estamos em tempo de excepção, já que o efeito desta situação, do ponto de vista das liberdades, merecerá, no fim, um outro debate importante. Mas isso, e a economia, terá de ficar para depois.

Sendo, porém, Portugal, um país onde tudo tem tutela estatal, este é também, inexoravelmente, um caso de gestão política. O nosso habitual elo mais fraco. Vejamos, então, se as Autoridades da Saúde têm as melhores condições para levar este combate a bom porto.

Primeiro o Sr. Primeiro-Ministro expressou total confiança no SNS e assumiu pessoalmente a coordenação directa da resposta a esta crise, depois, no Parlamento, assegurou, no seu estilo habitual, que não se mudam generais a meio da batalha, para afastar o cenário de demissão da Sra. Directora-Geral de Saúde. Isto, para logo depois, quando o SNS24 começou a exibir as suas primeiras fragilidades – num dia desta semana foram mais as chamadas não atendidas que as atendidas –, o Presidente da SPMS, responsável pela coordenação da linha SNS24 ser demitido e ser nomeado um novo Presidente. Vale a pena dizer a este propósito que o demitido é licenciado em Medicina, doutorado em Gestão e tem formação vária em assuntos da saúde, e que o recrutado é um ex-Secretário de Estado socialista com formação… em Direito.

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Quando se esperava liderança, iniciativa, protocolo e planos de contingência, quando ainda não havia nenhum caso sinalizado em território nacional, a Direcção-Geral de Saúde apresentou o worst case scenario (1 milhão de contaminados) e o Governo recomendou que se lavasse as mãos. Pelo menos aqui, sabemos que não podíamos ter Governo mais competente naquela que parece – para lá do recolhimento social – a mais eficaz medida de profilaxia: lavar as mãos.

O problema é que, no espaço de poucos dias, o Governo foi ultrapassado pelos acontecimentos. Universidades públicas suspenderam actividades lectivas por iniciativa própria, empresas privadas suspenderam eventos por sentido cívico, administrações locais encerraram espaços públicos por dever público, e Costa – que, recorde-se, chamou a si a coordenação das operações – anda vagamente desaparecido. A Oeste nada de novo, portanto.

Onde se esperava coordenação, tem reinado um certo improviso. Onde se esperava determinação do Governo, roga-se pelo bom senso das pessoas. Ainda antes disto tudo, a antecipar o que aí vinha, a Sra. Directora-Geral da Saúde tinha ido almoçar a um restaurante chinês, para tranquilidade da Nação, e recomendado menos beijos e menos abraços. O Senhor Presidente da República disse logo, entre um beijo e uma selfie, que isso assim não é vida; isto, claro, antes de ter tido a epifania do bom exemplo e se fechar em casa em quarentena autoimposta.

Soube-se também que o Hospital de Coimbra, em desespero e como improviso, comprou fatos de pintor para proteger os médicos, porque não havia material. O Hospital de Coimbra, do SNS, o mesmo que o Sr. Primeiro-Ministro tinha assegurado que estava preparado para fazer face ao vírus. Falta de material que, seja material de proteção, sejam desinfetantes, máscaras, óculos, batas ou fatos, verifica-se um pouco por todo o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não apenas nos hospitais de Coimbra. A este propósito, aliás, diz o presidente do Colégio de Medicina Interna da Ordem dos Médicos, Armando de Carvalho, que as administrações das unidades têm “pedido que o material seja mantido resguardado porque já houve desvios”. Acrescenta ainda a notícia que surgem cada vez mais relatos de desaparecerem máscaras e desinfetantes até dos blocos operatórios, áreas onde o acesso é restrito.

Os fatos de pintor seriam uma óptima metáfora que, não fosse o caso grave e o humor inoportuno, dir-se-ia servirem para pintar a manta. Mas num país onde se assalta Tancos, rouba material de guerra, e toda a linha de comando assobia para o lado, isto quase parece um delito irrelevante. Num país onde morreram dezenas de pessoas em incêndios por falhas graves de coordenação da Protecção Civil, que tinha visto as suas chefias serem substituídas pouco tempo antes por boys socialistas, isto parece uma falha menor.

Mas não é o caso: nem o delito é irrelevante, nem a falha menor. A crise do Covid-19 é a primeira pandemia que vivemos no auge do globalismo. À velocidade do 5G. Agir rápido, determinadamente e competentemente pode ser a diferença entre um cenário mau e o worst case scenario. Ainda não está tudo perdido, mas é bom lembrar que tempos de excepção exigem medidas excepcionais. O Serviço Nacional de Saúde tem gente competente e responsável. E, já agora, o Governo também. Sei que estas críticas que aqui fiz magoam e até podem ser injustas para tantos que estão a dar tudo para estar à altura da situação. Mas há erros que se sucedem e que podem ter consequências dramáticas. O sucesso não é final e o fracasso não é fatal, disse o maior. E se é verdade que nem tudo está a correr bem, no momento em que escrevo estas linhas ainda podemos esperar que nem tudo seja fatal. Ainda que, neste mesmo momento, a recomendável antecipação das férias da Páscoa e o encerramento das escolas ainda não tenha sido decretado.

Aproveitar a Quaresma – que o mundo cristão celebra – e os seus ensinamentos talvez não seja má ideia. Afirmar isto numa sociedade cada vez mais secularizada – e até anti-cristã – pode ser visto com um misto de indiferença, estranheza e zombaria. Mas é pena, já que neste tempo, recomenda a Igreja que se pratiquem a Penitência, a Oração e a Conversão. E é pena, porque a Penitência, reconhecendo as falhas, a Oração, definindo o propósito, e a Conversão, mobilizando o acto, são práticas que, por si só, valem sempre a pena. E que hoje fazem ainda mais sentido. Reconhecer as falhas, definir o propósito e mobilizar o acto é o que o país espera dos seus líderes.

* Este texto foi escrito ontem após a conferência de imprensa que se seguiu à reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública [11.03.2020; 22:30]. Hoje [12.03.2020] o Primeiro-Ministro anunciou a suspensão da actividade lectiva a partir da próxima 2ª feira.