A palavra democracia tem sido uma das mais escritas e ditas nos últimos tempos. Em Portugal, popularizou-se sobretudo depois de 25 de abril/novembro de 1974 (dias 25 de liberdade, um a puxar mais para a igualdade, outro mais para a democracia). Parece que há indícios de que, em vários locais e por diversas razões, a democracia está a vacilar, prestes a ir pró galheiro ou quase a bater a bota.

Há dias, num breve esclarecimento que ocorreu numa turma, em que todos os alunos são adultos, sobre algumas diferenças de papel e de estatuto que distinguem professores e alunos, ouvi uma aluna a reclamar contra essas diferenças dizendo: «Então onde é que está a igualdade? Já se fez o 25 de abril! Vivemos em democracia!». Alguns alunos, pelo esgar, consideraram a intervenção despropositada, mas outros acenaram, em gesto de concordância.

Este episódio deixou-me com vontade de refletir sobre o facto de muitos adultos, em remissão infantil, serem capazes de confundir democracia com igualdade. Porque será que isso acontece? Poderá essa confusão promover a desvalorização da democracia?

É por demais óbvio que não somos iguais e que, portanto, a igualdade é uma intrujice que se tenta colar à realidade com cola que não tem qualquer capacidade de aderência. Assim, quando se mistura ou se confunde igualdade com democracia, a evidência da falsidade de uma pode levar ao desmérito da outra, o que é de lamentar.

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Etimologicamente “governo do povo”, a democracia em que vivemos permite que, de quatro em quatro anos, cada eleitor possa colocar um voto na urna, sendo todos contabilizados do mesmo modo, para que se elejam os representantes do povo. Mas esta aparente igualdade, que, de facto, se verifica na contagem, é absolutamente momentânea, instantânea e até se pode dizer que é uma inverdade, pois quer antes, quer no momento do voto, são enormes as desigualdades no conhecimento dos programas sujeitos a sufrágio, bem como nas capacidades muito diversas dos eleitores em influenciar o voto dos outros, quer através de meios legais, quer através de meios ocultos e ilegais. Há um pequenino momento em que somos quase iguais para, logo depois da igualdade na contagem, se manterem as abismais desigualdades. Os representantes têm muito mais poder do que os representados, os influentes têm muito mais poder do que os influenciados, os economicamente favorecidos têm muito mais poder do que os desfavorecidos.

Segundo a Constituição da República, “somos todos iguais perante a lei”. Mas quem é que não sabe que isso é apenas teórico? Que, na prática, é uma aldrabice? Que apenas é verdade na letra de lei? Custa um bocadinho lidar com esta evidência, não custa? Por vezes, retorcem-se as entranhas, não é? Porém, enquanto uns têm acesso a excelentes advogados, com escritórios a trabalhar na respetiva defesa, pagos principescamente (por vezes, com dinheiros subtraídos ao erário público), outros, quase todos, não tem essa possibilidade. Sabe-se bem que os que detêm maior poder político ou económico estão muito menos sujeitos à cegueira da justiça, que, apesar da venda, deve ter uma espécie de olho no meio da testa para abençoar mais uns que outros. A balança nunca esteve equilibrada. Aparece-nos com o fiel no ponto de equilíbrio em desenhos, ou nas estátuas que representam a senhora de olhos vendados. Contudo, todos os dias são conhecidas notícias de políticos ou de outros poderosos que, depois de tantas trafulhices ou mesmo crimes de alto gabarito, têm o condão de conseguir adiar, adiar, ou, em muitos casos, safar-se do cárcere.

Vamos lá por os pontos nos “iis”. Esta confusão entre igualdade e democracia, que tem sido largamente disseminada, onde, semioculto, pode ser avistado o objetivo de enganar a maioria do povo e, com esse “bondoso” engano, amansar os mais explorados e os mais fracos, na tentativa de evitar revoluções, tem as suas vantagens para a comunidade, em termos de estabilidade social, mas é sobretudo proveitosa para quem detém maior poder político, para quem dispõe de maior capacidade de influência e para os maiorais do poder económico.

Não seria mau falar verdade e esclarecer que confundir democracia com igualdade é um embuste que não tem ponta por onde se lhe pegue. Uma coisa são os ideais (acredito que a boa vontade de Platão era genuína), e outra é a realidade. Não somos iguais. Temos muitas semelhanças, temos muito que nos une, e isso deve ser valorizado, porém, não vale insistir em enganarmo-nos dizendo que somos iguais. De olhos abertos, ou mesmo de olhos fechados, é trivialíssimo perceber que o não somos. O enorme poder político, de influência ou económico de uns não tem qualquer comparação com o infinitesimal e desprezível poder de outros, esmagadoramente mais numerosos. E isso tem consequências em todas as dimensões da vida em sociedade.

Pense-se na saúde, ou no acesso a cuidados de saúde. Alguém imagina que somos iguais? A experiência é simples. Entre-se num hospital público, se lá se conseguir entrar sem ter de ficar na fila que se amontoa, e entre-se num hospital privado, se se tiver poder económico suficiente para o fazer. Alguém será capaz de não notar a diferença? Alguém será capaz de dizer que são semelhantes? Até o bicho-preguiça, que é dos animais com menor cérebro, seria capaz de os distinguir. Quem acreditar na existência do Pai Natal talvez possa também crer que, quando os filhos dos mais poderosos estão doentes, eles os levam para as filas dos hospitais públicos.

Lembrando o poeta popular António Aleixo, “Se a morte fosse interesseira/Ai de nós o que seria/O rico comprava a morte/Só o pobre é que morria.” Na verdade, tudo indica que a morte não seja interesseira, mas há muitos seres humanos e organizações sanitárias capazes de ajudar a adiar a morte, e isso é interessante, pelo que quem pode pagar por esse interesse tem vantagem nesse adiar. Os dados demonstram que os pobres morrem com mais facilidade. Será porque a morte tem algum fetiche ou alguma predileção por pessoas de poucos recursos financeiros? Nem a fé religiosa nem nenhuma orientação política nos propõe acreditar nisso.

O caro leitor conhece, certamente, restaurantes onde nem sequer se atreve a entrar (ou onde lhe seria vedado o acesso), porque sabe que lhe cobram, pelo jantar, uma quantia exorbitante, tendo em conta o seu vencimento mensal. É natural que, passando por perto, os veja bem compostos de comensais, isto se a visibilidade para o interior lhe for acessível, o que, por certo, não acontece na maioria dos casos. Também, seguramente, já ouviu falar de certos vip’s que gastam uns trocos em pequenas cirurgias estéticas de milhões, cujo valor ultrapassa, em muito, tudo o que conseguirá ganhar durante toda a vida. E é claro que sabe de casos de magnatas cujos iates, mais parados que o mar morto, existem apenas com o propósito de lhes pertencerem, pois são mais usados pela criadagem do que pelos próprios proprietários, que lhes dispensam uns diazitos durante o ano. Há os investidores que fomentam os hotéis de luxo, há os arquitetos e engenheiros que os planeiam, há os trabalhadores que os constroem (alguns que morrem nessa atividade), há os clientes que frequentam esses hotéis… Como pode o leitor enganar-se com “igualdades”?

A verdade e a democracia ficariam a ganhar se, desde cedo, se ensinasse aos jovens que a democracia é o melhor sistema político até agora experimentado, mas muito diferente do conceito de igualdade. Dizer que somos iguais, e repeti-lo, pode ajudar a encapotar, a esconder algumas desigualdades, mas é pior do que gato escondido com o rabo de fora, ou melhor dizendo, rabo escondido com o gato de fora. É evidente que sabemos que somos todos diferentes, embora com muitas semelhanças. Lidamos com essas diferenças e semelhanças desde sempre e para sempre. Podemos e devemos organizar-nos para ajudar a diminuir algumas diferenças, o que, em muitos casos, pode ser vantajoso para a comunidade, mas mentir, enganar, falsear, garantir que a igualdade ideal desceu à terra e se tornou real não é o melhor caminho para quem acredita que, na disputa pelo bem, a verdade deve levar a dianteira.

Pretendo que seja possível viver em democracia sem nos enganarmos com falsas igualdades. O empregado sabe bem como tem direitos e deveres diferentes dos do patrão. O representante do povo sabe bem como o respetivo estatuto é diferente do do representado. Aquele que não tem dinheiro suficiente para comprar um frigorífico novo é capaz de conhecer outros que dão essa quantia de gorjeta no final de um jantar. O aluno jamais pode convencer-se de que os professores e os alunos são iguais, que têm os mesmos direitos. E deveres? Os professores têm responsabilidades que jamais poderiam ser exigidas aos alunos. A lista das diferenças seria tão longa, tão extensa, que o melhor é nem começar… para evitar a omissão de tantas.

Pensar-nos iguais só pode acontecer por inépcia ou com o objetivo de enganar incautos e distraídos, o que, embora deplorável, é uma tendência que se observa em boa parte dos seres humanos. Não somos iguais à nascença nem somos iguais durante a vida nem na morte. As condições em que uns nascem são radicalmente diferentes das condições de outros. Todas as circunstâncias ao longo da vida são distintas para cada pessoa.

Para uma boa educação, não podemos propagandear que os alunos são todos iguais, mas antes dizer, em abono da verdade, que nos esforçamos para que tenham um tratamento tendencialmente igual, embora nem no ato de inscrição na escola se possa dizer que estão em pé de igualdade, pois, para uns, os pais podem escolher a escola e, para muitos outros, isso está vedado. Até na mesma turma, na mesma aula, há os atentos e os desatentos, os trabalhadores e os preguiçosos, os mais dotados para aquela disciplina e os que revelam outros dotes, e não é possível que o professor não se aperceba disso. Aliás, tanto as teorias da educação como os poderes políticos pedem ao professor que aplique constantemente a diferenciação pedagógica, o que, dito por outras palavras, é a assunção de que os alunos são diferentes e devem ser tratados de modo adequadamente diferente.

De quatro em quatro anos podemos votar, e isso é bom e deve ser valorizado, mesmo sabendo que muitos votos, muitos, são completamente condicionados pela propaganda publicitária, honesta e desonesta, mas isso é como tudo na vida. Aceitamos ou até queremos que assim seja. Pelo menos, ao que parece, a maioria de nós aceita que assim seja, nem que seja porque, simplesmente, não se vislumbre sistema melhor. Como diria Karl Popper, a democracia evita o recurso a revoluções e oferece a eventual possibilidade de substituir um governo por outro, todavia, defendo que isso pode ser conseguido sem necessidade de embustice. Não precisamos de nos iludir, pois o poder, embora com pequeninas nuances, é sempre inclinado. Não se conhece um único caso em que os poderes democráticos não se misturem com os poderes oligárquicos (onde o poder é mantido por uma pequena fração de indivíduos) e, em muitos casos, com a promoção, mais ou menos clara, desses poderes. Dizê-lo e reconhecê-lo faz bem, nem que seja apenas por ser verdade e, com ela, defender a democracia.

É necessário ensinar, explicar, difundir que democracia não é igualdade, mas sim razoável possibilidade de trabalhar, de mudar, de intervir, de melhorar. Em grande parte do mundo ocidental, vivemos num regime político caracterizado por ser uma democracia representativa, o que parece ser, do ponto de vista da maior abrangência do progresso social e económico, o melhor de todos os regimes políticos. São esses países que são procurados por milhares de seres humanos que fogem da miséria provocada por autocracias. Migrantes que não vêm à procura da igualdade, mas sim de melhores condições de vida.

Em síntese, creio que uma boa forma de defender a democracia é não deixar que esta se confunda com igualdade. Insistir que, em democracia, somos iguais é por demais evidente que se trata de uma ilusão. Essa falsidade pode fazer perigar o apelo à democracia, que é necessária e pode muito bem ser mais verdadeira e mais real.