1 Foi um dia, já há um bom de anos, ainda o Cardeal José Tolentino de Mendonça estava na Capela do Rato, mas lembro-me bem porque foi aí que começaram as “Conversas”. Recordo-me sobretudo do porquê. Ou seja da razão de ser de uma escolha concreta, no caso esta mesma que hoje me traz: conversar com figuras públicas (peço desculpa da horrenda expressão) com Deus lá dentro. Arte, literatura, cidadania, ciência, música, política: sentidas, interpretadas, transmitidas por aqueles e aquelas que sendo seus protagonistas, o fazem num traço de união com a fé. Posso dar outro nome: com uma relação com o sagrado. E ainda outro: com a noção de uma inspiração que por vezes transcende os limites da própria existência.

O caso da beleza-versus-sagrado questiona e interpela: criar pode ser uma forma de interpretar o divino? Bach ou Boticcelli estariam a falar com Deus quando pintavam ou compunham? ( Ou Deus a falar com eles?) A fé celebra a criatividade ou transtorna-a?

Numa palavra: de que coisa falamos quando arte e sagrado, beleza e espiritualidade interagem ou dialogam? De Deus?

2 O (então) Padre Tolentino talvez uma das pessoas no mundo a quem estou mais grata e com quem superlativamente gostei de colaborar mais de uma vez, sugerira-me colaborar com a Capela Rato da qual era na altura o capelão. Seguindo alias a tradição de muitas ocorrências e intervenções ali ocorridas desde há muitos anos. Assentámos na natureza destas “Conversas”. Chamavam-se “E Deus, nisso tudo?” e ouviram-se muitas e muitos, num leque que se ia abrindo, sempre de modo e modos diferentes, para deixar ver percursos, opiniões, histórias, surpresas, desabafos, memórias. Em torno de uma espiritualidade e uma verdade com substância. Tornei a fazê-lo na Igreja do Campo Grande (a convite do seu jovem prior, Hugo Gonçalves) e hoje volto à Capela do Rato.

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O Padre António Martins, “sucessor” do Cardeal Tolentino, sugeriu uma reedição: perguntar, perguntar, ouvir, ouvir. O que será andar com Deus na mochila? Um desejo, uma responsabilidade, uma oportunidade, uma provação, um privilégio? Eles dirão. Sebastião Bugalho, Matilde Trocado, David Lopes, Martim Sousa Tavares, Ilda David, dirão.

3 Dará que pensar a maior – ou menor – procura de Deus neste tempo sombrio. A fé responsabiliza o discernimento. Mas diante dos écrans da barbárie ouço por vezes – atribuir a “culpa” a Deus por “permitir “ o impermitível. O desnorte e a aflição substituem facilmente a racionalidade. E no entanto… a escolha entre a vida e a morte está na vontade do ser humano em usar da sua liberdade mesmo que nem sempre possamos perceber o que nos perturba.

4 Uma coisa é certa e parece em curso. Chama-se desocidentalização (e deveria dizer também descristianização). Pode ainda não parecer mas não é de hoje, tem vindo a ser plantada e o seu solo a ser criteriosamente adubado. Diante dos nossos olhos distraídos e de uma passividade conivente, a desocidentalização vem fazendo um caminho. À vista desarmada, o Ocidente esmorece, Cristo desaparece. Não é uma “impressão” ou um pressentimento, é um facto. Não deveria ser disfarçado ou apenas visto como um tempo entre guerras, um atordoado entre-parentesis, um corte temporário, como numa avaria eléctrica. Parece-se com a dissolução de uma matriz, o termo de uma longa era, o fim de uma história tecida pelos melhores valores espirituais e civilizacionais. Apesar dos cortejos do mal, apesar do que o Ocidente permitiu de terrível ou promoveu de inominável no século XX, há uma marca e uma herança que julgo não terem a mesma exacta correspondência noutras latitudes. Sempre invejado, apetecido e incansavelmente procurado, o Ocidente vai-se esvaindo, corroído pelos vírus da decadência. Talvez desapareça daqui a dez anos ou meio século, as civilizações extinguem-se, a decadência tome o seu tempo: há muito que com uma indiferença pastosa e difícil de interpretar, os vírus da decadência se activam com sucesso na gangrena ocidental. Não contariam certamente com a benevolência com que são acolhidos num corpo doente, nem ainda menos esperariam tão cúmplices mãos a abrirem-lhes o caminho.

5 Um pouco mais de vinte quatro horas após o dia 7 de Outubro, ficámos informados – porque o testemunhámos em directo – de que as ruas ocidentais se confundiam com as ruas árabes no calibre do seu ódio a Israel. Repulsa visceral. Os dias seguintes ampliaram a escalada desta escolha. E nesse sentido, na liberdade dessa demissão do ocidente, as ruas mais cultas, mais desenvolvidas, mais intelectualmente sofisticadas e mais caras de muitas cidades europeias certificaram o pasmo aflito pelo que pode vir a suceder.

6 Então porquê estas “Conversas” – e acreditando nelas – se quase descrevi um requiem? Porque não se pode desistir. Não pode. Continuar, dá “anima” à esperança, consola-a. A esperança é desafiadora e depois ou perde-se ou ganha-se mas respondeu-se ao desafio. Ao menos isso. E conversar sobre o belo e o transcendente é em si um sinal dessa esperança

A crónica acima foi entregue antes da demissão do Primeiro Ministro. Três notas que acrescentei:

  1. Ontem foi o pior dia político da vida de António Costa e o melhor da vida de André Ventura. Há muito por esclarecer mas isto ficou esclarecido: o Primeiro Ministro saiu da mais terrível das maneiras, o fantasma de José Sócrates não cabia naquela sala; André Ventura entrará da melhor maneira no portão das eleições.
  2. Não só não julgo que António Costa tenha que fechar a porta ao seu próprio regresso à política como não acho que o tenha feito. Havia a obrigação de uma demissão – um chefe de gabinete está no coração do poder e Galamba era o detonador de todos os furacões. Isto dito, parecem esbatidos os indícios de mais. Pode ser que eu esteja enganada e Costa tenha partido de vez. Em qualquer caso o país merecia que a Justiça se despachasse de vez.
  3. Por muito que não me caiba a mim qualquer “parecer” antes da Justiça se pronunciar sobre os detidos de ontem de manhã, a verdade é que dois deles – Lacerda Machado e Vítor Escária – nunca me pareceu coincidirem com o que a política mais exige e recomenda: ética, ética, ética. Todos os sinais vermelhos de promiscuidade entre o dinheiro e a política estavam há muito acesos. Por ambos.