A Rússia e a Ucrânia estão novamente à beira do conflito armado. Nada particularmente surpreendente, tendo em conta que, desde a anexação da Crimeia, muito ficou por pacificar na fronteira. Assim, temos visto as tensões aumentar todos os dias. Kiev decretou um mês da lei marcial naquela região; Moscovo fez avançar navios para a fronteira marítima e tanques para a fronteira terrestre; o Ocidente, incluindo os Estados Unidos, começou por condenar duramente o episódio que levou à escalada da tensão – a apreensão de três embarcações ucranianas e a prisão dos seus tripulantes – mas começa a dar sinais de que teme uma nova guerra, moderando o discurso e pedindo contenção a Moscovo. As condições estão todas reunidas para que haja problemas graves.

À primeira vista, há um dado curioso. Tanto a Rússia como a Ucrânia usam como argumento principal para se defender (ou justificar a agressão) a violação das normas do Direito Internacional Público pelo rival. Ambos têm razão. Mas quando Kiev e Moscovo falam de direito entre nações estão a falar de coisas muito diferentes.

A Ucrânia refere-se aos pressupostos vestefalianos que, com as devidas adaptações, chegaram à Carta da Nações Unidas. A Rússia tem uma conceção que se aproxima bem mais dos princípios consagrados no Congresso de Viena de 1815.

A versão vestefaliana pressupõe um conjunto de princípios que nos são familiares. Os estados são soberanos, o que lhes confere o mesmo estatuto normativo, independentemente das suas capacidades. Têm todos, sem exceção, direito à sua integridade territorial (i.e. o direito a não ser invadido) e à não ingerência nos seus assuntos internos. Quando um estado, devido à superioridade do seu poder, se recusa a observar estas regras, está a violar o direito das nações.

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A versão das regras internacionais do Concerto da Europa aceitava os princípios vestefalianos, ainda que com uma ressalva: as grandes potências (eram cinco, incluindo a Rússia Imperial) tinham direitos e deveres que ultrapassavam os do estado comum. Tinham deveres de proteção dos mais fracos e de vigilância mútua entre si, assegurando assim que nenhum dos grandes voltava a ter tentações napoleónicas. Ora, isso conferia-lhes o direito a ter esferas de influência, ou seja, as regiões da vizinhança eram tuteladas pelas potências de forma a garantir, geopoliticamente, uma zona de segurança terrestre à volta do seu território. Para que essas áreas funcionassem de uma forma ordeira, o estado dominante ditava as regras (determinadas por si) e punia quem não as cumprisse. Como sugerido acima, esta é ainda (ou novamente) a forma como Moscovo se comporta internacionalmente.

Estou a especular? Então veja-se a Doutrina Medvedev‎ enunciada em 2008 e ainda vigente. Os dois primeiros princípios (de cinco) dizem que a Rússia procura contribuir para um sistema internacional multipolar (necessário para que Moscovo seja uma potência) em que impere o primado do Direito Internacional. Se desejasse um direito internacional vestefaliano, o desentendimento com a Estónia acerca da decisão de Tallin de retirar a estátua do soldado (russo) de bronze não teria acontecido. Afinal, quem decide soberanamente sobre os símbolos nacionais é o regime de cada estado. O mesmo se aplica às invasões da Geórgia (2008) e da Ucrânia (2014). Caso a soberania fosse o princípio central, estas guerras não teriam acontecido.

Já os dois últimos princípios da mesma doutrina – a proteção da vida e dignidade dos cidadãos russos onde quer que eles estejam e o reconhecimento de que as grandes potências têm “zonas de interesse especial” – não só vêm confirmar o que foi dito acima, como são elas próprias justificações que legitimam a expansão da russa pela sua esfera da influência.

Em suma: há uma conceção de Direito Internacional Russo e uma conceção de Direito Internacional Público.

Já sei. Vão dizer-me que a Rússia construiria a ponte sobre o estreito de Kersh, terminada em maio deste ano, e inaugurada por Vladimir Putin numa grande camioneta cor-de-laranja, exatamente na mesma, independentemente das condições internacionais que violam o direito à integridade territorial ucraniana. E que desde aí era apenas uma questão de tempo até que se fabricasse um conflito (viesse de que lado viesse da barricada desta contenda). Mas as ideias de como se devem organizar as relações entre os estados contam, e muito. Traçam linhas sobre o que é legitimo ou não. Quanto mais não seja dissipam dúvidas relativamente a quem é um membro construtivo no sistema internacional e quem não é.

O Direito Internacional Russo, praticado no século XIX pelas cinco grandes potências e hoje por Vladimir Putin é imperial. E como o mundo anda pouco dado a liberalismos e está em fase de transição de poder com o declínio dos Estados Unidos e a ascensão da China, convém prestar atenção ao mercado das ideias internacionais. Não vão interessar outros, como Pequim. Não se seja firme relativamente aos intentos russos e um dia talvez se acorde num novo tipo de legitimidade. E para quem preza a liberdade e independência dos pequenos países, uma mudança destas não é, certamente, para melhor.