O “dito acordo” entre a Grécia e as três instituições que gerem a ajuda ao país permite três conclusões:

1) Do programa inicial nada sobra e até do programa eleitoral que levou o Syriza ao governo e tanto excitou ambições e vontades por essa Europa fora já pouco se reconhece; o radicalismo de extrema-esquerda, acompanhado por uma espécie de oportunismo de alguns dirigentes da direita nacionalista, desapareceu em pouco mais de um mês.

2) Este não é bem um acordo, mas uma “espécie de acordo”, porque quase tudo o que há de essencial ficou por decidir.

3) E a União Europeia, em especial a zona euro, fez mais uma “prova de vida”, a desmentir como sempre tem feito desde o início desta crise os arautos da desgraça.

Vejamos cada um destes pontos com um pouco mais de atenção:

Primeiro: a velha máxima de Clemenceau, de que tanto gosto – “vi na minha vida muitos radicais chegarem a ministros, raramente vi ministros radicais” (adaptada) -, tem neste caso uma bela ilustração.  Tratava-se em primeiro lugar de rejeitar o programa de resgate; de (no início) repudiar a dívida correspondente a 175% do produto do país, depois de denunciar até 50% dessa dívida, e mais recentemente de a repensar se possível numa grande conferência europeia; finalmente, de adoptar e pôr em marcha um conjunto de medidas anti-austeridade para tentar cicatrizar o martirizado tecido social grego.

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O resgate continua e, como decorre desta espécie de acordo, o que está já em causa e vai começar a ser discutido de imediato é o que fazer depois dos quatro meses: será provavelmente um novo resgate, mas com outro nome. Chamar-se-á por exemplo “medidas de assistência” e todos ficarão contentes. A dívida vai continuar a ser paga, sendo uma das urgências no curto prazo: no calendário estão mais de 16 mil milhões de euros (!) a pagar aos credores, repartidos entre BCE e FMI (só a este quase 10 mil milhões), até Setembro. As ideias de pagamento anexado ao crescimento ou de obrigações perpétuas vão, para já, continuar exactamente isso, ideias;  elas não são necessariamente más, mas o problema dos programas radicais é justamente que tendem a matar as boas intenções pela forma irrazoável como são anunciados e começados a pôr em prática.

Restam as promessas anti-austeridade: o aumento do salário mínimo adiado; o abandono da privatização do porto do Piréu repensado (os chineses não gostaram); a recontratação de funcionários públicos, a recuperação de subsídios, a abolição das taxas na saúde, entre outras, são medidas ainda dependentes da existência de margens orçamentais ou, muito simplesmente, de dinheiro, que o governo grego não tem, sobretudo depois da sangria recente (faltaram mil milhões de euros só na execução orçamental de Janeiro).

Em todo o caso, foi rápido, extremamente rápido, o esvaziamento do radicalismo grego. Mas não era preciso e foi de mau gosto o comentário de Schauble a respeito desta espécie de acordo, afirmando que queria agora ver como iria o governo explica-lo aos seus eleitores. De mau gosto e desnecessário: os alemães já perceberam que ganharam, não precisam de lembrá-lo aos derrotados (e até convém que os deixem ganhar a face).

O segundo ponto é rapidamente enunciado: esta espécie de acordo não resolve nada de essencial e nem sequer está concluído.  A Grécia vai ter agora de dizer que medidas entende necessárias (e como as vai implementar) para assegurar o respeito pelas metas orçamentais; pode ter ganho alguma margem, quer quanto ao nível de défice orçamental primário aceitável quer na apresentação das medidas – que não são obrigatoriamente as anteriores mas que, sejam quais foram, terão de ser aprovadas pelas entidades responsáveis pela gestão do apoio à Grécia. Sobra a hipótese dessas medidas, a apresentar até segunda-feira, desagradarem às referidas instituições – FMI, BCE e Comissão europeia -, caso em que esta espécie de acordo se transformaria em acordo nenhum (decisão no eurogrupo de terça-feira).

O terceiro ponto e para mim o mais relevante, respeita à prova de vida feita pela zona euro e pela União em geral: como se verifica, e contra as vozes teimosas e persistentes que repetida e reiteradamente anunciam o colapso da integração europeia, ninguém verdadeiramente o deseja. Assegurar que ela se mantém depende em grande parte da coesão do conjunto (dos países do euro mas também dos 28 da União), implicando necessariamente resolver o grande desequilíbrio entre países do Norte e do Sul, excedentários e deficitários, ricos e pobres. A consciência dessa necessidade existe e há muito que se buscam caminhos e soluções para equilibrar a balança dos sacrifícios, devolvendo aos mais afectados, como Portugal, a Grécia ou a Irlanda, uma parte dos resultados positivos gerados no seio de um mercado interno com políticas sociais e uma indispensável união monetária. Parte desse caminho tem vindo a ser feito, com grande ajuda do BCE, é certo, mas também com reformas consideráveis e necessárias, regulação e supervisão bancária, gestão orçamental (cada vez mais) partilhada nos semestres europeus, programas estratégicos de desenvolvimento conformes à realidade das empresas e dos negócios (Europa 2020, Horizonte 2020).

O caminho está a ser feito mas implica equilíbrio. Os excessos de voluntarismo e protagonismo como o protagonizado pela Grécia, não contribuem em nada para a busca de soluções pragmáticas e socialmente justas. O eleitorado grego tem de ser respeitado, mas os outros 27 eleitorados também. A Europa caminha em conjunto (ou não caminhará de todo), o que também obriga ao respeito de iguais e nada se ganha em hostilizar um país como a Alemanha –  e os alemães também tem de evitar a tentação de se mostrarem maus vencedores.

E viram como é possível escrever um artigo inteiro sem usar a palavra “troika”? É de facto muito mais cómodo escrever “as instituições externas responsáveis pelo programa de assistência” ou coisa que o valha. Afinal, até a semântica pode ser radical.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa