Imagine-se num país que não é o seu, a trabalhar sem ter sequer a protecção que todos os outros cidadãos nacionais têm. Não fala a língua, a sua cultura é bastante diferente, a sua vida é casa-trabalho-casa. De repente vê-se num turbilhão de gente à sua porta, jornalistas, autoridades diversas e polícias. Querem que saia dali. Com aquela humildade que dói, de algumas culturas orientais, vai dizendo que sim sem perceber nada do que se está a passar. Só sabe que no dia seguinte tem de ir trabalhar, caso contrário já sabe que perde o emprego – se é que assim se pode chamar. Dizem-lhe que virão mais tarde. Não vieram. Estava a dormir, eram 4 da manhã, batem à porta, polícia, autocarros – seria um cão ali? – e dizem para entrar. Mas para onde vai? Chega ao Zmar, pessoas à porta que, percebe, não querem deixar entrar, não é bem-vindo.

Foi isto que em traços gerais se passou com algumas pessoas que tiveram de ser alojadas temporariamente noutro local, porque o sítio onde viviam não tinha condições para fazerem o isolamento profilático. Verdadeiramente, nem condições humanas mínimas tinham. Podemos ler a reportagem de Carolina Branco aqui no Observador.

O que se passou – e tem passado – com os imigrantes, neste caso específico em Odemira, tem de nos envergonhar a todos. Ao Governo, à autarquia de Odemira mas também e especialmente aos que no Zmar se comportaram de forma tão egoísta e pouco solidária.

Ninguém, contrariamente ao que pareciam fazer crer, estava a entrar pela casa dentro de ninguém. O que o Governo pediu numa primeira fase, foi a cedência de casas num alojamento turístico, e que pagaria, para alojar temporariamente pessoas que precisavam de estar em isolamento profilático. Tão simples quanto isso e semelhante ao que se fez com outros alojamentos – no início da pandemia até houve reportagens sobre isso. Foi porque a administração judicial do Zmar não quis chegar a acordo que o Governo avançou para a requisição civil.

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Claro que o Governo podia ter-se dado ao trabalho de explicar melhor o que se tinha passado, porque teve de avançar para a requisição civil, porque teve de requisitar todo o empreendimento e o que estava em causa. Mas lamentavelmente o ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita não consegue explicar nada. E em vez de aproveitar as entrevistas que os jornalistas lhe fazem para clarificar, resolve atacar tudo e todos.

Quando se pensa que já não pode piorar, eis que realojam os imigrantes de madrugada. Aparentemente sem qualquer preocupação em saber como iriam trabalhar no dia seguinte e ainda menos que pouco iam dormir. Quem é o responsável? O Governo, mas também obviamente a Câmara de Odemira.

Depois temos as pessoas que vivem no Zmar, que se dizem proprietárias de casas. Opuseram-se a que um grupo de pessoas, imigrantes, fossem ali alojadas temporariamente em casas que não lhes pertenciam. Representados pelo advogado Nuno Silva Vieira, que também representou os lesados do BES, os que se dizem proprietários de 160 das 260 casas no Zmar avançam com uma providência cautelar que é aceite pelo Tribunal.

Entretanto a autarquia conseguiu encontrar alojamentos se não para todos, pelo menos para boa parte dos imigrantes que se encontravam no Zmar, deixando em paz aquelas pessoas tão pouco solidárias, que não estavam dispostas a partilhar um amplo espaço com quem precisava de um sítio para isolamento profilático.

A história do empreendimento turístico é contada aqui na Sábado (só para assinantes). É mais um caso que envolve o BES e o governo de José Sócrates. O Zmar, Eco-Camping Resort, um projecto que nasce em 2008, merece o selo de PIN (Potencial Interesse Nacional) da era do governo de José Sócrates. Como outros projectos ruinosos. Consegue assim instalar-se numa área de reserva ecológica e agrícola. Está ligado à família Espírito Santo – o seu promotor chama-se Francisco Espírito Santo de Mello Breyner – e foi financiado quer pelo BES, quer por fundos comunitários. O Novo Banco, entretanto, vendeu parte dos créditos ao fundo norte-americano KKR e ainda tem parte deles. E a empresa entrou em processo de insolvência.

No meio deste processo, algures em 2014, o Zmar vende algumas das casas do empreendimento num processo difícil de compreender. De acordo com esta notícia do Expresso, um T2 é vendido a 30 mil euros. A questão é: que tipo de propriedade é esta? Aquelas casas podem ser autonomizadas? São as pessoas que compraram estas casas que se opuseram a que os imigrantes se instalassem temporariamente nas casas que pertencem apenas ao resort.

Há várias lições neste caso. A primeira e mais importante é que temos um problema grave para resolver de integração de imigrantes.  Um problema que tem sido ignorado pelas autarquias e pelo Governo ou que, pelo menos, não tem sido resolvido. Aparentemente o Governo tem tentado encontrar uma solução, esbarrando com as restrições de construção de alojamento, impostas pelas regras das áreas de reserva ecológica. Mas que, repare-se, permitiram que se construísse o Zmar, hoje tratado por algumas das pessoas que lá vivem como se fosse um condomínio privado fechado.

Só com uma política activa de integração de imigrantes se pode mitigar a exploração a que estão sujeitos, quer dos traficantes como dos empresários. Já é suficientemente desumano que se impeça um ser humano de viver onde considera que pode viver melhor. Quando cá chegam devem ser integrados e apoiados, nem que seja pelo egoísmo de precisarmos deles. Cada vez que estivermos a comer framboesas ou legumes, como espinafres, que vêm daquela zona, podemos estar praticamente certos que estiveram nas mãos daqueles imigrantes. E quando olharmos para o preço temos de perceber que só pode ser tão barato porque se praticam injustiças ao longo da sua produção. Deste ponto de vista somos também responsáveis pela exploração de que são vítimas.

Claro que há uns mais responsáveis do que outros. As autoridades que devem fiscalizar as condições de trabalho têm de ser mais activas já que e lamentavelmente pouco podemos contar com os empresários. Verdadeiros empresários deveriam preocupar-se também com as condições de vida de quem trabalha para eles. Alguns haverá que o fazem, mas tudo indica que a maioria esquece-se que uma empresa deve ser uma equipa.

Uma outra lição que é igualmente difícil de enfrentar é que vivemos – ou algumas pessoas vivem – sob uma hipócrita capa de solidariedade. Participam em várias iniciativas de voluntariado e, quando chega a hora de se mostrarem solidárias com uma ser humano, viram-lhe as costas. Foi isso que, infelizmente, vimos no Zmar. É isso que infelizmente vemos nas posições que algumas pessoas assumem contra a imigração.

Ironicamente tudo isto se passou enquanto no Porto se preparava a Cimeira Social, onde se segue a ritualização da União Europeia em mais um compromisso com os respetivos e variados estudos espalhados por sites da União Europeia. Tivemos até uma Cimeira com a Índia, de onde são alguns dos imigrantes em Odemira.

Hoje temos uma União com muitos papéis, declarações e estudos e pouca capacidade de execução e distante dos problemas do quotidiano do cidadão comum. Do Porto até Odemira há uma distância de anos luz que nos deixa preocupados com o futuro.