Uma família em isolamento, dia 6
“Que dia é hoje? Já estou meio baralhado.” Lembro-me de ontem ter dito isto pelo menos duas vezes. E houve outras em que não disse mas pensei.
Quantas vezes disseram isto nos últimos dias? Quantas vezes já tiveram de parar a meio de uma frase para pensar às quantas andam? Estamos no segundo fim de semana de isolamento para a maioria dos portugueses e começamos a ficar com os calendários turvos, se nos faltam as balizas que habitualmente chegam com o ritmo de trabalho e com a escola dos miúdos. Ora, estando o ritmo de trabalho alterado e as escolas fechadas, estamos conversados quanto a balizas.
Passamos meses a desejar que cheguem os dias mais longos, passamos as últimas semanas do inverno à espera da primavera, passamos os dias da semana à espera que chegue o sábado e o domingo para podermos fazer coisas diferentes das que preenchem a rotina de segunda a sexta. Mas este domingo é diferente. Neste domingo não haverá almoços de família em casa da mãe ou do sogro, não haverá aquela aula especial no ginásio, não haverá o café rotineiro na pastelaria em frente à igreja. Este domingo, para muita gente, sabe a um qualquer. Nem sequer sabe a sábado.
A programação televisiva lembrar-nos-á que é domingo: a TVI tem missa às 11h10, a SIC tem Fama Show depois de almoço, a RTP emite o Got Talent à noite (um best of, porque os diretos estão reduzidos ao mínimo) . Lá fora, na rua que espreitamos a partir da janela ou para onde fugimos em períodos curtos para ir às compras ou à farmácia, as lojas que se mantêm abertas enquanto vigorar o estado de emergência estão hoje de portas fechadas. E para quem está em teletrabalho é natural (e saudável) que hoje não tenha respostas a e-mails ou que não consiga marcar reuniões por skype.
Mas, para muita gente, hoje será mais um dia parecido com o de ontem. E não será muito diferente do de amanhã. Lembram-se d’O Feitiço do Tempo (Groundhog Day), aquele filme com o Bill Murray e a Andie MacDowell (e uma marmota), em que o apresentador do boletim meteorológico Phil Connors fica preso no mesmo dia, acordando todas as manhãs na mesma pequena cidade da Pennsylvania, EUA, para ver as mesmas pessoas e fazer as mesmas coisas? É mais ou menos isso. Só que isto não é ficção.
Os especialista recomendam que, mesmo nestas condições – ou sobretudo nestas condições – é importante que os dias de pausa convencional continuem a ser ocupados com atividades diferentes. Faz bem à cabeça, mantém o nosso bioritmo regulado, ajuda-nos a acalmar as pessoas à volta. Há gigabytes de informação online e sábios conselhos sobre isto. Mas, à medida que o número de pessoas infetadas cresce e a teia de contágio alarga, sabemos que lá fora está uma doença que não vemos, que não sentimos de imediato, que nos pode matar, que nos pode ser transmitida pelo nosso melhor amigo e que pode fazer de nós agente contaminador das pessoas de quem mais gostamos. E que nós podemos trazer para casa.
Cá dentro, nas cabeças que olham os dias a suceder-se, essa é a grande diferença que vai marcando o calendário: a quinta-feira dos 785 (contaminados contabilizados), a sexta-feira em que chegámos aos 1020, o sábado dos 1280 e dos 12 óbitos. Que dia será hoje? O domingo dos 1500? O domingo das 15 mortes? Das 20? Das 25?
Há quem continue a ver nestes dias uma lição que o universo nos está a dar, um grito de revolta da terra, uma gigantesca possibilidade para reduzirmos as emissões de CO2 e poluirmos menos os oceanos. Uma oportunidade para nos tornarmos melhores pessoas, também – eu próprio já o fiz em mais do que uma ocasião, é uma muleta útil para ultrapassar estes tempos, essa de tentar ver o copo meio cheio no meio dos copos todos partidos. Para quem está na linha da frente nos cuidados de saúde, porém, os dias também se sucedem sem grandes diferenças: para eles é sempre a abrir, sem descansar, numa sequência de procedimentos que se repetem para tentar salvar vidas e acalmar doentes. Esses – que não estão fechados em casa é verdade – não olham para isto como um raio de esperança nos seres humanos melhores e também não conseguem ver grandes diferenças nos dias da semana. Esta crónica da enfermeira Carmen Garcia, publicada ontem no Público, é magistral para pensarmos nisso.
Ontem de manhã, a minha filha Carolina, com 7 anos, perguntou se não ia fazer trabalhos de casa. Ficou contente quando percebeu que era sábado – eu também me apercebi disso na altura – mas a mim pareceu-me só que era o dia que veio depois do outro antes. E hoje não é diferente. Tirando a missa na TVI.
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