Uma família em isolamento, dia 83

“As aulas estão quase a acabar?” A pergunta foi disparada esta semana da boca da mais velha ao ouvir-me falar ao telefone. “Boa!” acrescentou logo a seguir. “O que vamos fazer nas férias?” E eu gelei.

Respirei fundo. Arregalei os olhos. Fiz aquela cara de quem diz que está a meio de uma chamada e não pode falar. Chutei para canto. Do outro lado da linha, a ouvir esta interrupção de conversa, estava uma responsável de um centro de Atividades de Tempos Livres (ATL) que não sabia responder-me ao que eu ia perguntando de várias maneiras diferentes. Como vai ser? Que jogos vão fazer? Onde vão fazer? E quantas pessoas terão para olhar pelas crianças? E como vão assegurar as distâncias de segurança? E nos autocarros para a praia, quantos miúdos podem levar? E conseguem garantir que eles não partilham lanches e não trocam brinquedos?

Tantas perguntas, poucas respostas. Se eles não sabem, eu também não sei o que dizer à Carolina, que tem 7 anos, e à Madalena, que tem 6, que estão há quase três meses fechadas em casa e estão tão fartas disto como eu.

A boa notícia é que vão acabar os e-mails dos professores, as aulas à distância, o equilíbrio entre o teletrabalho dos pais e os trabalhos de casa dos filhos. As más notícias é que muitas famílias ainda não sabem como vão organizar a vida depois disso. Ainda não sabem o que vão fazer aos pequenos depois disso.

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No final do ano letivo acabará o apoio do estado aos pais de crianças com menos de 12 anos que tiveram de ficar em casa com os filhos porqueas escolas estão fechadas. Muitas empresas manterão os funcionários em teletrabalho, seguindo as recomendações do governo, e, desta forma, muitas crianças irão continuar com o pai e a mãe entre quatro paredes. Outras irão para os avós – os mesmos avós que tentámos proteger durante meses, por serem um grupo de risco.

O governo adiou em duas semanas a abertura dos ATL não integrados em estabelecimentos escolares (devia ter ocorrido a 1 de junho, quando reabriu o pré-escolar e as atividades de apoio à família), dando assim mais tempo ao executivo para preparar as regras exatas em que esses serviços irão funcionar – e mais tempo às empresas, IPSS e associações de pais para se adaptarem ao que aí vem. O problema é que não se sabe muito bem o que aí vem.

De acordo com um manual preparado para os campos de férias, lançado pelo Instituto Português do Desporto e da Juventude, em colaboração com a Direcção-Geral da Saúde, atividades que impliquem grande contacto físico ou partilha de equipamentos estão desaconselhadas. Judo, ginásio, piscina, andebol, voleibol, basquetebol ou tudo o que envolva uma bola a bater no corpo é coisa para ficar de lado nos próximos meses. O que sobra, então? Imaginação e criatividade, dirão alguns. Um grande saco de dúvidas, responderão outros.

Durante dois meses e meio a sala de aula passou para a sala de estar, para a cozinha, para os quartos. Durante dois meses e meio, o trabalho dos pais mudou-se para casa, aquele local seguro onde tantas vezes tentamos que as obrigações profissionais não entrem mas que agora tivemos de escancarar para albergar relatórios, reuniões, obrigações. E tudo se misturou. As famílias tentaram adaptar-se, as crianças tentaram adaptar-se, os professores tentaram adaptar-se. Mas – apesar dos grandes sacrifícios, do cansaço extremo e das enormes doses de paciência – poucos terão conseguido verdadeiramente adaptar-se.

Aqui fizemos o possível, com uma mãe enfermeira que sai de manhã para trabalhar e um pai jornalista freelancer que passa boa parte do dia ao computador. Quer dizer, passava. Porque o ensino à distância misturou-se com o meu trabalho, a vida que se vivia lá fora misturou-se com o dia a dia que se passou a fazer cá dentro, o cansaço aumentou, a paciência diminuiu e o resultado nem sempre foi pacífico num mar de tranquilidade.

Mas agora vai tudo vai mudar. Não sabemos é bem para o quê.

Não estamos sozinhos aqui. As férias das famílias vão ter uma boa quantidade de dúvidas e outro tanto de medo, que irá também na bagagem. Estamos na terceira fase do desconfinamento, já retomamos algumas atividades e sabemos que a máscara, a lavagem das mãos e a distância social são coisas para continuar. E sabemos que teremos de encaixar isso nas férias. Até quando? Ninguém sabe.

Com o fim das aulas acaba uma parte das preocupações mas começa outra. O alívio mistura-se com alguma ansiedade e vamos agora saber como é que as famílias vão gerir as emoções e se adaptarão a esta nova fase das suas vidas. Que brincadeiras poderemos agora incluir no “novo normal”? E será que o que ensinámos aos filhos durante estes meses é suficiente para os proteger na praia, na piscina, na terra dos avós, nas festas da aldeia? E nos tais ATL que ainda ninguém sabe bem em que condições vão funcionar?

E depois há outra coisa… Por cima de nós, para lá das perguntas sobre os meses que aí vêm, mantém-se a mais importante dúvida de todas: e se o próximo ano letivo também for assim?

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste

Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento

Dia 26. Não vamos ter ensino à distância

Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia

Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro

Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio

Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril

Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?

Dia 55. Filhos em casa, teletrabalho, saúde mental e pouco descanso

Dia 62. As pequenas vitórias que nos passam ao lado

Dia 69. Como combater a fadiga do Zoom e dos filhos? Com vinho

Dia 76. A minha filha não regressa à escola na segunda-feira