Até há pouco perguntávamo-nos quando e como seria a fase pós-confinamento. Sabemos agora que iremos viver três fases de adaptação gradual.  E que a rotina a que regressarmos, por mais que ansiemos, já não será a mesma. Só por si, os nossos novos adereços irão dar-nos conta de que estamos perante uma realidade inimaginável até há três meses, nem sequer em devaneios ficcionais.

Sairemos para uma liberdade condicionada pelas restrições e cuidados indispensáveis para não nos infetarmos nem infetarmos os outros. Antes de deixarmos a casa, teremos de verificar, para além das chaves, carteira, telemóvel e outras coisas necessárias, os imprescindíveis novos objetos quotidianos: máscara, luvas e desinfetante. Sairemos com ou sem vontade?

Sair pode implicar sentimentos contraditórios: o desejo de liberdade e o medo de a viver. Alternamos entre nos sentirmos muito entusiasmados ou muito assustados. Desejamos apanhar ar, sentir o sol, passear, conviver. Temos vontade de dar passos para a frente, mas, ao mesmo tempo, olhamos para baixo para vermos onde colocamos os pés e à nossa volta para garantirmos as devidas distâncias de segurança. Não podemos partir com ganas para o mundo, pois, apesar de sentirmos que ele está à nossa espera e que nele desejamos aventurarmo-nos, temos uns elásticos associados a um vírus medonho que nos prendem ao chão da realidade atual e não nos permitem para já embalar em altos voos.

Temos de mediar as necessidades individuais, o uso da nossa liberdade, e as necessidades coletivas de contenção da doença.  Temos de negociar as fronteiras da livre circulação de todos. Devemos equilibrar ímpetos egoístas e deveres altruístas. Entre a casa e o espaço público, temos de manter hoje uma cadeia de cuidados de e para todos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Talvez nunca como agora tenhamos experimentado a necessidade de conjugação entre indivíduo e sociedade, a preocupação com a saúde do nosso corpo singular com a saúde do corpo comunitário/social. Os princípios do prazer e da realidade, enunciados por Freud, estão, pois, colocados em diálogo, numa relação de compromisso entre os nossos desejos e a moral ética para o bem de todos que se impõe. O jogo entre a liberdade individual e social matiza a responsabilidade humana atual. E, com a consciência de que fazemos parte de um todo que faz face à infeliz tragédia que vivemos, vamos muitos de nós tornando-nos próximos uns dos outros, pois todos somos braços do mesmo corpo que se quer salvaguardar e/ou  salvar. E assim, o Homem pós-moderno reencontra-se num lugar menos individualista, tendo redescoberto o bem-estar de se sentir ligado às pessoas por quem nutre afeto ou até às que desconhece.

Algumas pessoas parecem não querer voltar à rua por se sentirem ameaçadas pelo risco de ficarem doentes e, ao mesmo tempo, por haver um lado seu ao qual até agrada ficarem em casa, no casulo, junto daqueles de quem gostam e sem terem de cumprir horários nas idas e voltas dos seus locais de trabalho. Todavia, viver neste confinamento, que até agora nos garantiu uma sensação de proteção, pode tornar-se também sinistro por não ser o modus viviendi habitual. Somos afinal seres individuais, familiares, sociais, culturais e precisamos de viver dentro e fora de casa, na relação íntima com os nossos e nas relações mais arejadas com todos os outros, dos diferentes quadrantes dos nossos círculos sociais. É desejável que, pouco a pouco, e com a segurança devida, reconquistemos os nossos hábitos e amplas necessidades sociais e profissionais. É importante que o confinamento a que tivemos de estar sujeitos não nos confine a vontade de expansão da nossa mobilidade e da relação com os outros. Que o medo seja limitado o suficiente para nos proteger, mas que não nos impeça de avançarmos e reencontrarmos o nosso mundo (por mais estranho que ele ainda nos pareça).

Outras pessoas, que até já foram furando a quarentena aqui e ali, sequiosas de viver na rua de peito aberto e de estarem acompanhadas e inseridas num grupo alargado, procuraram manter os hábitos que têm vindo a ser suspensos como medida geral para o bem de todos. Agora, parece que não foram atingidas pelo medo e vivem exteriormente como se fossem intocáveis pela ameaça circundante. É necessário percebermos que não somos omnipotentes face a nós mesmos e aos outros e que estamos tão sujeitos e vulneráveis como qualquer outro, mesmo não pertencendo a nenhum grupo de risco.

Neste momento, se uns precisam de ser encorajados, aos poucos e com segurança, a sair, outros precisam de ser sensibilizados a respeitar o espaço comum e a refrearem a amplitude dos seus movimentos. Ponderação e bom senso, precisa-se. Devemos lembrar-nos sobretudo hoje de que a nossa liberdade acaba onde começa a liberdade do outro.

Todo nós, com mais medo ou mais ousadia, esperamos voltar à rua com um sentimento de confiança e segurança. Desejamos todos, gradualmente, ir recuperando lugares suspensos ao longo deste tempo.  Estamos perante o desafio de retomar (com novos hábitos) as nossas vidas e conquistar a total liberdade de andar sem medo. Aos poucos, pois ninguém quer voltar para trás.

anaeduardoribeiro@sapo.pt