Na entrevista que concedeu à RTP em 2 de Novembro último, Marcelo deu o sinal de como pretende que seja o segundo mandato. A forma como colocou as perguntas às quais respondeu num pôr e dispor inacreditável são um aviso, um vislumbre do que aí vem. O país será dele e ele ditará as regras. É uma democracia assim a que desejamos para o país?

O anúncio tardio da recandidatura de Marcelo é também um sério sinal do que o actual presidente quer fazer até 2026. A desvalorização do acto eleitoral, como se de um plebiscito de tratasse não devia ser encarado de ânimo leve. Marcelo recandidata-se num momento muito peculiar em que uma pandemia afectou o sector responsável pelo crescimento económico que permitiu a Marcelo e Costa iludir o país de que estava tudo bem. A partir da pandemia Marcelo bem pode ter antevisto o fim da actual legislatura. Não devemos esquecer que Marcelo deixa de ter um adversário político à sua altura caso Costa se demita após a presidência portuguesa da União Europeia e o fim das moratórias.

O segundo mandato de Marcelo pode ser marcado por um fenómeno que não sucede desde Ramalho Eanes: governos fracos e inexistência de maiorias sólidas no Parlamento, a que se soma um presidente reeleito que não mais terá de ir a votos. Se Costa sair, Marcelo será rei e senhor de Portugal durante 5 anos. Com certeza que o Presidente da República já se apercebeu desta possibilidade. Desta oportunidade única. Daí que, quando o Presidente refere que não vai fugir às suas responsabilidades, não anuncia, avisa.

É verdade que a revisão Constitucional de 1982 retirou certos poderes ao Presidente. O cargo que Marcelo exercerá entre 2021 e 2026 não é o mesmo que Eanes encontrou em 1976. Mas também não é mentira que desde 1987 nenhum Presidente teve a possibilidade de se deparar com um Parlamento tão dividido quanto o que poderá acontecer, caso haja legislativas em 2021. Marcelo foi um Presidente activo, que condicionou agendas, fez e desfez acordos, fez e desfez consensos, tem boas ligações na imprensa e (até ver) o apoio da rua. Será difícil a um primeiro-ministro, sem um apoio parlamentar sério, fazer frente a um Presidente como Marcelo. Por estas razões a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa comporta o sério risco de o nosso sistema semi-presidencial de pendor parlamentar, passar a ter um pendor mais presidencial.

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As consequências podem ser sérias porque à centralização do sistema numa pessoa soma-se a crise financeira, económica e social. Os próximos cinco anos vão ser extremamente complicados. Ora, essas dificuldades, ao mesmo tempo que poderão fortalecer a maior influência de Marcelo Presidente, irão também pôr em causa o exercício do seu mandato. Passando o Presidente a ser ainda mais influente, a percepção será de que este se torna no principal responsável do que vier a acontecer. E o problema nesse momento é que Marcelo pode não estar apto para ser esse Presidente. Marcelo foi popular num período de facilidades, quando colheu os frutos da legislatura de Passos Coelho e beneficiou da forma como Cavaco garantiu uma geringonça estável para quatro anos, com a exigência de um acordo escrito. Temo que não esteja a altura para o que aí vem. Marcelo foi excelente a tirar selfies, dar abraços e palmadinhas nas costas das pessoas com que se cruzava na rua. Duvido que o seja quando confrontado com protestos e assobios. Tive oportunidade de referir este perigo aqui no Observador, em dois textos, um publicado em Junho e outro em Outubro deste ano.

Um sistema político centrado numa pessoa que, apesar de Presidente há cinco anos, ainda não mostrou provas de ser capaz de estar à altura nos tempos difíceis, é um sistema que vai atravessar um teste de stress de custos imprevisíveis. Principalmente quando nesta eleição presidencial não há nenhum candidato eleitoralmente forte a defender a democracia liberal.

São muitos no PSD e no CDS que apostam em Marcelo para a defesa dessa democracia liberal contra o iliberalismo de Ana Gomes e de André Ventura (já para não mencionar João Ferreira). A aposta é errada e vai custar-nos caro. Primeiro, porque um dos legados de Sá Carneiro (a redução dos poderes presidenciais) pode estar em causa; segundo, porque não estando Marcelo à altura do desafio o descrédito será incomensurável.

P.S.: Em entrevista a Miguel Sousa Tavares, Marisa Matias definiu-se como social-democrata. Ora, se o BE, com o historial que tem do PSR e da UDP, é social-democrata, é legítimo que se pergunte porque fizeram o país perder tanto tempo. Quem sabe daqui a 40 anos, os herdeiros políticos de Marisa Matias e Catarina Martins se anunciem como liberais. O tempo perdido com a teimosia destas pessoas é que não se pode recuperar.