Como quase sempre que se debatem temas fracturantes, durante os meses que antecederam a votação sobre a eutanásia, houve quem defendesse que o assunto deveria ser decidido por referendo e houve quem pusesse as mãos à cabeça perante tal sugestão.

Os argumentos contra a existência de um referendo sobre estes assuntos são (quase) sempre os mesmos e variam muito pouco: à esquerda, alega-se que direitos humanos não se referendam e que a liberdade individual não pode estar sujeita à vontade das maiorias; à direita, advoga-se que a vida é inviolável e que, como tal, qualquer referendo sobre o assunto é ilegítimo.

Depois, há os que, como eu, consideram que estes argumentos se autodestroem. Não faz sentido dizer que não pode haver referendo porque ninguém tem legitimidade para decidir sobre a vida de uma pessoa e depois pôr a vida dessa pessoa à votação numa assembleia. Dado o nosso enquadramento jurídico, é impossível criar novas leis sem que haja uma votação que pretenda representar a vontade do eleitorado. Se a Assembleia tem legitimidade para fazer essa votação, por maioria de razão o eleitorado que a elegeu também tem.

Quando confrontados com esta contradição evidente, a resposta típica é que se espera que os deputados (como representantes esclarecidos) sejam um pouco mais evoluídos que os seus constituintes e que, portanto, estejam mais atentos aos direitos das minorias. Mas esse argumento parece ter pouca sustentação empírica. Por exemplo, em Portugal, em 1998, o resultado do referendo sobre o aborto foi praticamente de 50-50 (com ligeira vantagem para o Não). Antes, em 1997, a Assembleia da República tinha chumbado por um voto a proposta da JS de despenalização do aborto e, já em 1998, aprovou na generalidade, com 116 votos, uma proposta um pouco mais restritiva, também da JS. Ou seja, quer o eleitorado quer os deputados partiram-se praticamente ao meio, votando praticamente da mesma forma, ora pendendo ligeiramente para um lado ora para o outro.

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Dez anos depois, em novo referendo, 60% do eleitorado votou pelo Sim à despenalização do aborto. Ou seja, se alguma coisa, o povo era mais “progressista” do que os seus representantes na Assembleia. Ainda agora assistimos a uma votação semelhante na Irlanda, com a despenalização do aborto a ganhar com quase dois terços dos votos populares, sendo que nem é de todo óbvio que o parlamento votasse pela despenalização. Já quando se discutiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, se usaram os mesmos argumentos e a verdade é que, na Irlanda, aquele foi autorizado por referendo no mesmo ano em que o seu parlamento permitiu que casais do mesmo sexo adoptassem crianças. Ou seja, representantes e representados parecem andar a ritmos semelhantes. E, novamente, também nos Estados Unidos, por referendo, vários Estados aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo até 2015 (ano em que o Supremo Tribunal alargou o direito a todo o país).

Também se alega muitas vezes que os referendos são palco fértil para populismos, parecendo que se esquecem de que não foi um referendo que fez de Trump Presidente dos EUA, nem de Bruno de Carvalho Presidente do Sporting e que os vários partidos populistas que ganham terreno por toda essa Europa o fazem à custa de votações para o parlamento e não por referendos. Isto para não falar na eleição de ditadores como Hitler ou Chávez, que não consta que tenham sido escolhidos por referendo.

Ou seja, na minha opinião, os argumentos contra os referendos são muito pouco válidos. Veio tudo isto a propósito do possível referendo sobre a eutanásia, rejeitado por alguns à esquerda e outros à direita, com os argumentos de sempre. Sabemos como foi a votação do Parlamento, não sabemos o que seria uma eventual votação em referendo. Apenas sabemos que na última sondagem feita sobre a matéria (pelo menos de que eu tenha conhecimento), pelo Expresso – Fevereiro de 2017, a maioria era a favor da eutanásia (e também a favor da realização de um referendo sobre o tema).

Ao contrário do que muitas vezes se apregoa, um assunto como o da eutanásia é, por excelência, aquele que deve mesmo ser entregue aos cidadãos e não aos seus representantes parlamentares (pelo menos enquanto o sistema de eleição de deputados não sofrer alterações profundas). Os argumentos a favor disto são relativamente simples.

Quando nós votamos num partido, e não num deputado, escolhemos num conjunto razoavelmente coerente de ideias — ok, ok, reconheço que esta parte do argumento é fraquinha, mas faça de conta que não, só para conseguir ir até ao fim. Alguém que vote no PS sabe que está a votar num partido que se preocupa com as desigualdades sociais, mas que tem uma visão um pouco mais liberal do mercado do que, por exemplo, o Bloco de Esquerda e que não quer pôr em causa o processo de construção europeia. Alguém que vote no PSD pode contar com o mesmo tipo de preocupações do PS (défice baixo, por exemplo), mas com um maior pendor para as empresas — por exemplo, é mais provável que baixe o IRC do que baixe o IRS. Ou seja, é razoavelmente fácil de saber como é que cada um dos partidos da Assembleia da República votará em relação a uma série de tópicos, que vão desde os contratos de associação na educação às PPP nos hospitais, passando por assuntos europeus ou votações sobre alguns tipos de impostos. Isto é assim, porque nestes vários assuntos (e em muitos outros) há um fio condutor que os une e, como cada partido representa um corpo razoavelmente coerente de ideias (vá, não se ria), as suas votações são lógicas.

Num assunto como a eutanásia, é difícil encontrar uma ligação com o programa dos partidos. De um partido espera-se um programa coerente, mas a eutanásia não acrescenta nem retira qualquer coerência a um programa: posso ser a favor de que se baixe o défice mais depressa (ou não), de que se liberalize o mercado de trabalho (ou, pelo contrário, que se dê mais peso aos sindicatos), que se desafie o Tratado Europeu (ou não), que se invista na descentralização (ou não); nada destes assuntos têm que ver com a eutanásia. E não faz sentido que eu encontre um partido com o qual esteja globalmente de acordo e que deixe de votar nele porque estou em desacordo com a sua posição sobre a eutanásia. Ou vice-versa, não faz sentido votar num partido só porque estou de acordo com ele na questão da morte assistida, quando estou em desacordo em tudo o resto.

A grande vantagem do referendo é precisamente a de se votar num só assunto, enquanto ao se votar num partido se vota num cabaz de assuntos, a que se chama ideologia. Como a eutanásia é transversal a todas as ideologias — com a possível excepção do CDS, dada a sua matriz conservadora cristã, ou de um partido libertário radical —, é fácil encontrar pessoas que se sintam ideologicamente próximas e que tenham opiniões opostas sobre a eutanásia.

Concluindo, do debate de ontem, percebe-se que a eutanásia voltará à ordem do dia. Sendo lírico achar que, ao se votar em partidos, se possa eleger uma Assembleia da República que represente a opinião do povo neste assunto, nada mais natural do que perguntar-lhe directamente.