1. José Sócrates está como Napoleão depois da batalha de Waterloo — mantém a megalomania, mas perdeu as tropas. De repente, em poucas semanas, ficou irrecuperavelmente sozinho.

Na Justiça, José Sócrates ficou sem a proteção do segredo. A divulgação dos seus interrogatórios na SIC espalhou pelo ar as suspeitas e as acusações do Ministério Público, com som e imagem, limitando dramaticamente a sua capacidade de negar os indícios que foram apresentados e de politizar as intenções dos magistrados. Esse é o poder devastador da televisão: ver é diferente de ler; e ouvir é diferente de intuir.

Na imprensa, Sócrates foi abandonado por comentadores atrás de comentadores, numa ruidosa sucessão, ficando sem o arsenal mediático que dava oxigénio aos argumentos e às conspirações que lhe permitiam propagar slogans e evitar explicações.

Na praça pública, Sócrates foi exposto por amigos e pela ex-namorada, tornando-se assim num leproso social que ninguém defende e todos evitam.

Na política, Sócrates foi execrado pelo seu partido, o que o deixou a planar sobre um vazio, sem legitimidade, sem rectaguarda e sem narrativa. Para viver, a sua defesa precisava desesperadamente de inimigos políticos; mas, para sobreviver, precisa igualmente de amigos políticos. Quando queremos dividir o mundo entre “nós” e “eles”, não basta ter os segundos — é preciso ter os primeiros.

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No seu mundo de fantasia, José Sócrates acha que ainda existe uma última via de preservação: os militantes socialistas. Dentro da confusa cabeça de Sócrates, os dirigentes do PS traíram-no, mas as bases continuam a seu lado, sólidas e solidárias. É por isso que já está a ser organizado um almoço, para os próximos dias, do “Movimento Cívico José Sócrates Sempre”, onde são esperadas 200 pessoas. Desta vez, com muita persistência e persuasão, talvez as 200 pessoas apareçam. Mas, em breve, Sócrates irá chocar contra o muro da realidade: a pouco e pouco, as 200 pessoas vão transformar-se em 100, depois em 50, depois em 20, depois em 10 — até restar apenas Sócrates e um ou dois indefectíveis, que permanecerão a seu lado por teimosia ou hábito.

Neste momento, por pura táctica, o PS ainda repete que “Sócrates deixou uma marca muito positiva como primeiro-ministro”, mas, dentro de muito pouco tempo, quando a máquina do partido terminar o seu trabalho de afastamento e destruição, não sobrará nada do governo de José Sócrates, nem daquilo que ele entende ser o seu legado político.

Mesmo que o Ministério Público não consiga provar as acusações em tribunal, mesmo que ele seja absolvido, depois de tudo o que se passou nos últimos dias Sócrates ficará na história como um corrupto, como um mentiroso, como um venal. Só lhe resta, portanto, uma saída: contar tudo. Se, de facto, José Sócrates é aquilo que o Ministério Público diz, então conhecerá muitíssimo bem os subterrâneos do regime. Quem recebeu o quê? De quem? Em troca de quê? Nomes, nomes e mais nomes.

Se Sócrates falasse, não seria por cálculo jurídico nem por estratégia eleitoral. Seria por vaidade — ele próprio confessou nos interrogatórios que foi a “vaidade” que sempre o motivou na política. Ao sentir que querem fazer dele o único corrupto de Portugal, Sócrates pode querer provar que havia mais, e havia muitos.

2. A história é conhecida. Um dia, ao aproximar-se uma terrível tempestade de uma aldeia, a polícia emitiu um alerta de evacuação pela rádio. Um católico devoto ouviu o aviso mas decidiu ficar em casa e pensou: “Tenho fé em Deus. Se eu estiver em perigo, Ele vai mandar-me um sinal”.

Meia hora depois, já com a água a entrar-lhe pela porta, dois vizinhos num bote tocaram à campainha e ofereceram-se para o levar. O homem recusou a ajuda e pensou: “Tenho fé em Deus. Se eu estiver em perigo, Ele vai mandar-me um sinal”.

Ao fim de uma hora, quando já se tinha refugiado no telhado para escapar às cheias, apareceu um helicóptero dos bombeiros. O homem mandou-o embora e pensou: “Tenho fé em Deus. Se eu estiver em perigo, Ele vai mandar-me um sinal”.

Ao fim de pouco tempo, as águas atingiram o telhado e arrastaram o homem, que se afogou. Ao chegar ao Céu, o católico devoto encontrou Deus e queixou-se: “Deus, tive fé em Ti. Se eu corria perigo, porque é que não me mandaste um sinal?”. Perplexo, Deus respondeu-lhe: “Como assim? Eu mandei-te um alerta pela rádio, um bote e um helicóptero. Estavas à espera de mais?”

O PS parece este infeliz católico. Para o prevenir contra José Sócrates, a Ética Republicana enviou-lhe o Freeport, o caso Cova da Beira, as casas da Guarda e as trapalhadas da licenciatura. Mesmo assim, os socialistas elegeram-no secretário-geral e protegeram-no como primeiro-ministro. Estavam à espera de mais? Sim: aparentemente, estavam à espera que o Observador desse uma notícia sobre as offshores de Manuel Pinho.