1. A proposta do grupo de economistas do PS relativa à baixa da taxa da TSU teve uma virtude: a de assumir que existe um problema de sustentabilidade da Segurança Social. Até agora, para o PS, a reforma de 2007 tinha resolvido todos os problemas por muitas décadas. Mas, ao mesmo tempo, repete e agrava um erro comum a todas as reformas do sistema de pensões: trata de resolver problemas de hoje atirando a factura para o futuro e, sobretudo, volta a agravar a injustiça intergeracional já existente. Mais uma vez, vai deixar uma parte das contas para outros pagarem.
Comecemos pela forma como o PS, no seu documento mais detalhado sobre este tema, “Uma década para a Segurança Social portuguesa”, assume o problema da insustentabilidade. É que fá-lo de uma forma tão retorcida que é quase cómica: “Mesmo com a recuperação de uma parte considerável das recentes perdas cíclicas do sistema, a evolução demográfica permite antecipar que a esta realidade se possam vir a juntar, num futuro não muito longínquo, problemas estruturais de financiamento em virtude da demografia dos pensionistas ser essencialmente oposta à demografia dos contribuintes para o sistema.”
Em português corrente o que isto quer dizer é que o PS reconhece que os problemas estruturais do sistema não decorrem apenas da recente crise – como têm dito tantos dos seus dirigentes e deputados, para a seguir acrescentarem que a culpa é da “estratégia de empobrecimento” –, mas desse facto simples, evidente, de termos cada vez mais pensionistas e cada vez menos trabalhadores a descontarem.
Mas deixemos esta curiosa passagem do documento para irmos ao essencial. E o essencial é que o PS quer mexer nas fórmulas de financiamento da Segurança Social, tirando dinheiro ao sistema. E quer fazê-lo sem, como se escreve de forma cristalina, tocar “nas pensões já formadas ou próximo de serem constituídas”. Ou seja, o PS reduz o financiamento mas não reduz os pagamentos, porque se recusa a aceitar que o valor de muitas das pensões em pagamento constitui uma injustiça intergeracional. Ora esta é uma realidade que só por cegueira deliberada pode ser negada.
Por coincidência – infeliz para este tipo de abordagem, mas importante para podermos todos ter uma discussão mais esclarecida –, a Comissão Europeia acaba de divulgar o seu Ageing Report 2015. Ora o que podemos ler nesse relatório é que, mesmo sem as actuais propostas socialistas, as condições em que um trabalhador se reforma hoje são muitíssimo melhores do que aquelas em que os actuais contribuintes se reformarão no futuro. Senão vejamos: em 2013, o valor da primeira pensão de quem se reformou nesse ano correspondeu, em média, a 57,5% do seu último salário base; em 2025, já só corresponderá a 44,8% e em 2060 cairá ainda mais, para 30,7%. Hoje, essa taxa de substituição é superior à média da zona euro, onde está nos 46,3%; em 2060 ficará bem abaixo dessa mesma média, que deverá situar-se nos 38,6%.
2. O que é que estes números nos mostram?
Primeiro, que um jovem que entre hoje no sistema vai descontar para uma pensão que, quando passar à situação de pensionista, corresponderá a cerca de metade do valor real das pensões que os seus descontos de hoje pagam (não nos esqueçamos que não descontamos para um mealheiro que nos pertence, descontamos para pagar as pensões dos actuais reformados na esperança de que os nossos filhos e netos depois descontem para pagar as nossas).
Segundo, que o nosso sistema é hoje mais generoso do que a média da zona euro no que toca à formação das actuais pensões, e que será muito mais penalizador daqui por umas décadas. Isso sucede por dois motivos: porque somos uma das sociedades mais envelhecidas da zona euro, um dos países com uma demografia mais desfavorável; e porque adiámos sempre as reformas do sistema, recusando-se sempre o poder político (excepto durante a actual crise, mas sempre com a oposição frontal do Tribunal Constitucional) a tocar nas reformas a pagamento ou mesmo nas dos trabalhadores muito perto da idade da reforma.
Face a este desequilíbrio entre as vantagens do presente e as desvantagens do futuro, o que propõe o PS? Compensar o dinheiro que a Segurança Social vai deixar de receber devido às baixas na TSU não com um corte nas pensões actuais, mas com um corte ainda maior nas pensões futuras. Eis a forma como justifica a medida: “A actual geração ‘pede emprestado a si própria’, não há nenhuma transferência intergeracional”.
Lê-se e até custa a acreditar. Primeiro, porque, apesar da evidente injustiça do actual regime, assumir que a não existência de nenhuma transferência intergeracional é uma virtude, quando na verdade é um defeito. Depois, por tentar vender a medida como um empréstimo que se faz a si próprio. Ora sucede que isso só é verdade para quem beneficiar do período transitório de baixa da TSU – todos os trabalhadores que estejam hoje fora do sistema (desempregados, emigrados, demasiado novos, informais) não beneficiam da medida mas levam à mesma com o corte nas suas pensões futuras. Mas mesmo que beneficiasse todos, seria, sempre, uma espécie de empréstimo sem alternativa, sem escapatória. Ao menos quem desconta podia ter liberdade de escolha entre o regime em vigor e o proposto pelo PS.
Argumenta-se ainda no documento que tenho vindo a citar que esta opção a favor da intangibilidade das pensões em pagamento se justifica por uma questão de confiança no sistema: os actuais trabalhadores perderiam a sua confiança na Segurança Social se houvesse esse tipo de cortes. Trata-se de um argumento extraordinário. Eu, por exemplo, trabalho há 39 anos e já passei por várias reformas da Segurança Social. Todas elas, e mais esta se se concretizar, prejudicam o cálculo da minha futura (e eventual) pensão. Todas elas fizeram com que me arrependesse de opções que tomei em função do regime existente, e que depois foi sempre mudando. Sei que a situação dos meus filhos é ainda bem pior do que a minha. Nem consigo imaginar como será a dos meus netos. Mesmo assim dizem-me que um sistema que prolonga e agrava injustiças relativas me dá mais confiança do que uma reforma que procurasse, mesmo que mitigadamente, mesmo que moderamente, corrigir uma parte dessas injustiças. Não é para levar a sério.
É pena que em Portugal os portugueses raramente façam contas e ainda menos se deem ao trabalho de lerem tudo o que os partidos produzem. Se não fosse assim já mais gente estaria a fazer o verdadeiro debate sobre a descida da TSU, que é o que diz respeito aos direitos futuros, não o hoje promovido pelos grupos de interesse do costume em torno dos direitos presentes.
Perante estes dados, só posso chegar a uma conclusão, a mesma a que Fernando Ribeiro Mendes chegou há dez anos quando, depois de uma tentativa frustrada de reformar a segurança social no primeiro governo de Guterres, escreveu o livro “Conspiração Grisalha”: o lobbie dos reformados é muito forte e o peso dos votos dos pensionistas é demasiado elevado para os políticos terem coragem de enfrentar a necessidade de tocar em interesses constituídos.
3. Mas vamos ainda assim admitir que estas propostas do PS eram justas, correctas e funcionavam (e que estimular o consumo das famílias era a melhor forma de relançar a economia e não a melhor forma de agravar o défice externo). Se o fizermos e, depois, olharmos para as contas que estão no anexo final do documento, continuará a haver números que não batem certo.
Vou dar um exemplo: no cenário dos economistas do PS, o Estado gastará em prestações sociais no final da próxima legislatura, em 2019, menos 968 milhões de euros do que o previsto no que eles designam como “cenário central inicial” e que é o da Comissão Europeia. Ou seja, quase mais mil milhões de euros de poupança, isto quando se promete ao mesmo tempo repor os “mínimos sociais”, dar mais subsídios e pagar mais prestações. Como é possível?
Será a diminuição do desemprego, onde o PS espera um milagre? Não chega. Então o que é? Dando voltas ao documento, e já que os modelos utilizados não são públicos, só encontro uma explicação: nos cenários do PS o crescimento médio da despesa com pensões nos próximos anos será de 2,1%, isto depois de o crescimento médio anual, de 2009 para cá, com pensões congeladas excepto nos escalões mais baixos, ter sido de 3,8%. Não se explica no relatório como se chega a tal número, já que o contingente de pensionistas vai continuar a aumentar, assim como a pensão média. Por isso fica a dúvida: estamos perante desconhecidos pózinhos de perlimpimpim ou os números que foram “espremidos” para o resultado final dar certo?
Não basta juntar 12 economistas (mas nenhum com experiência de trabalho no sector privado) para dar credibilidade a opções que, no fundo, são políticas, como a que volta a agravar a injustiça intergeracional do nosso sistema de pensões. E num país onde, ao contrário do que sucede no Reino Unido ou na Holanda, não existem auditorias independentes das promessas eleitorais, não basta a sonoridade das assinaturas para compreendermos a autenticidade de alguns números.
Era bom por isso que a maioria detalhasse rapidamente as suas propostas para também as podermos avaliar e, depois, continuar um debate importante que, quando entrarmos na gritaria da campanha, se arrisca a ficar enterrado e completamente esquecido.
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