1 Já tudo terá sido dito sobre os resultados das eleições presidenciais de domingo da semana passada. Mas, tanta coisa tem sido dita que o essencial parece estar a passar para segundo plano: a muito expressiva vitória de Marcelo Rebelo de Sousa foi a vitória da moderação e da estabilidade do regime — fundado na concorrência pacífica e civilizada no Parlamento entre partidos rivais, sob a firme regência imparcial do Presidente da República.

Esta tinha sido a mensagem exemplar do candidato Marcelo Rebelo de Sousa — ao longo de inúmeros debates, e sob ataques permanentes de todos os candidatos rivais, bem como de inúmeros comentadores. E esta foi também a mensagem muito expressiva dos eleitores. Sob a tremenda pressão da pandemia, o eleitorado acorreu às urnas, de forma exemplarmente ordeira e cívica. E deu uma vitória expressiva ao candidato da moderação em todos os distritos e concelhos do país.

Como gostavam de dizer Mário Soares e Cavaco Silva, a meu ver muito certeiramente, foi a vitória do bom senso dos Portugueses.

2 Antes do acto eleitoral, inúmeros analistas, comentadores e políticos falavam da crescente dissonância entre “as elites do regime” e a massa das pessoas comuns — que estariam revoltadas e indignadas contra o “regime” (uma expressão sobretudo usada no terceiro-mundo). Depois de conhecidos os resultados, muitos dos mesmos analistas, comentadores e políticos conseguiram voltar a dizer o mesmo — sobretudo porque se concentraram em especulações infindáveis sobre as votações dos candidatos liminarmente derrotados.

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Especialmente peculiar tem sido a repetitiva insistência na alegada “vitória” do candidato mal-criado — cujo nome sempre me escapa, um tal Vieira, ou Ventura, ou algo do género. Antes das eleições, diziam que esse candidato poderia provocar uma segunda volta. Ou que, em qualquer caso, ficaria em segundo lugar. E que isso seria devido ao chamado “esgotamento do regime e do sistema”.

O “cavalheiro” em causa (cujas maneiras não seriam admitidas num Gentlemen’s Club, nem seguramente numa humilde “cottage” onde uma família de bem tentasse educar os seus filhos ) ficou em terceiro lugar, a anos-luz de qualquer hipótese de uma segunda volta. Mas os comentadores continuam a falar na “vitória” muito expressiva do “candidato anti-sistema”.

3 Há aqui seguramente uma dissonância, como dizem os comentadores. Eu até lhe chamaria, com o devido respeito, de dissonância cognitiva.  Mas receio ter dizer que essa dissonância cognitiva tem um sinal contrário ao que tem sido anunciado pelos comentadores e pelos críticos do “regime” e do “sistema”.

Tudo indica que são as “chattering classes” (por vezes designadas por elas mesmas como “elites”) quem tem uma animosidade radical contra o que chamam de “regime” e de “sistema”. E foram as pessoas comuns quem votou em massa no candidato da moderação e da estabilidade do regime, Marcelo Rebelo de Sousa, — que muitos comentadores e todos os candidatos rivais acusavam de ser “vazio”.

4 Receio que a minha provecta idade me permita recordar, com alguma bonomia, que já assistimos a estas dissonâncias cognitivas  no passado.

Mário Soares liderou o 25 de Novembro, e depois foi eleito, e depois re-eleito, Presidente da República contra uma “elite” de comentadores falando em nome do “povo” (designadamente os comunistas e membros da ala esquerda do Partido Socialista, cujos nomes polidamente não vou agora recordar) que o designava como “homem dos americanos”.

Cavaco Siva foi duas vezes eleito primeiro-ministro com maioria absoluta, e depois duas vezes eleito presidente contra uma “elite” de comentadores, (sobretudo também comunistas e membros da ala esquerda do Partido Socialista cujos nomes não vou aqui polidamente recordar) também falando em nome do “povo”, que o designavam como “voz do capitalismo”.

Em suma, tanto no caso de Mário Soares como no caso de Cavaco Silva [e poderíamos aqui acrescentar Ronald Reagan e Margaret Thatcher], as “chattering classes” falaram do “esgotamento do regime”. Tal como hoje, entre nós, as “chatering classes” falam do “esgotamento do regime” — a propósito de um candidato marginal simplesmente mal-criado.

Mas os eleitores tranquilamente defenderam a conservadora-liberal-democrática manutenção do regime. E deram uma inequívoca vitória a Marcelo Rebelo de Sousa.

5 É caso para dizer “Trust the People” — como costumava dizer Edmund Burke, o liberal-conservador que no século XVIII defendeu no Parlamento britânico os colonos americanos, os direitos dos católicos irlandeses e liderou durante nove anos o “impeachment” de Warren Hastings, governador da Índia, acusando-o de desrespeitar a cultura ancestral dos indianos — e, por isso, desrespeitar os princípios da rule of law do muito estimável Império Britânico.

Foi esse mesmo Edmund Burke que a seguir condenou veementemente a fatídica revolução francesa de 1789, acusando-a de despótica e sem maneiras. Daqui emergiu uma clivagem fundamental entre duas culturas políticas modernas — uma não-revolucionária, da direita e da esquerda democráticas, confiante em eleições e na soberania do Parlamento; e uma outra revolucionária, da direita e da esquerda radicais, confiante na liderança “esclarecida” de minorias radicais e zangadas, falando em nome do povo e dos “oprimidos”.

Talvez fosse apropriado recordar este tema aos nossos “zangados” comentadores da esquerda e da direita radicais. Em qualquer caso, o tema será revisitado já a partir da próxima quinta-feira num programa sobre as “Seis Revoluções da época moderna” (a inglesa de 1688, a americana de 1776, a francesa de 1789, a portuguesa de 1820, a brasileira de 1889 e a russa de 1917) que o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa promove com a PUC de São Paulo. Voltarei a este tema.