Primeiro, mostraram vontade. Depois, fingiram recuar, por entre notícias contraditórias. Finalmente, na noite das facas longas do regime, deram o golpe, e despediram a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal. Atreveram-se mesmo.

É bom lembrar o que estava em causa. É verdade que o governo e o presidente da república não eram obrigados a reconduzir a Procuradora-Geral da República. Mas nas actuais circunstâncias, era perfeitamente legítimo esperar que o fizessem. Primeiro, porque a justiça portuguesa não tem simplesmente entre mãos uns quantos casos melindrosos, mas, segundo a acusação da Operação Marquês, uma conspiração para subverter a democracia, a qual só no mandato da Dra. Joana Marques Vidal pôde ser investigada. Segundo, porque o governo é neste momento exercido por antigos colegas de José Sócrates. Por tudo isto, talvez se pudesse esperar do governo e do presidente da república um zelo redobrado para não deixar nenhumas dúvidas de que o poder político não pretendia de modo nenhum influenciar o curso da justiça, por exemplo substituindo a Procuradora-Geral que deixou, como lhe competia, prosseguir a investigação.

Não foi isso que aconteceu, e é importante perceber porquê.

A oligarquia portuguesa gerou, nos últimos anos, dois projectos de domínio do Estado e do país. O primeiro, conforme descrito na acusação a José Sócrates, assentou no controle das alavancas política, judicial, financeira e mediática por uma pequena facção liderada pelo então primeiro-ministro Sócrates. O objectivo era o monopólio das grandes decisões e dos grandes rendimentos por uma clique defendida contra qualquer sério escrutínio da justiça ou da imprensa. É uma estratégia que faz lembrar a gestação das autocracias da Europa de leste, onde as aparências da democracia (eleições, tribunais) servem apenas para encobrir a concentração do poder em poucas pessoas.

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A estratégia socrática, tal como analisada na acusação da Operação Marquês, foi comprometida pela crise financeira e pela decorrente falência do Estado, bancos e empresas que tinham sido a base de influência do socratismo. Os seus protagonistas principais acabaram mesmo sob a alçada da justiça, para grande espanto dos próprios e dos seus sequazes.

Mas a partir do fim do ajustamento financeiro, a oligarquia não demorou a gerar outra forma de organização do poder. Ainda protagonizada pela rede de amigos e de famílias que esteve com Sócrates no governo, já não assenta, porém, no exclusivismo de uma facção, mas na sua disponibilidade, num ambiente de fraqueza geral dos partidos e corporações, para mediar toda a espécie de entendimentos, muito para além do que era costume. Foi assim que o Partido Comunista, com os seus sindicatos de funcionários, e o Bloco de Esquerda, com a sua universidade e o seu jornalismo, acabaram na rede – a mesma rede em que um desesperado Rui Rio tenta agora arranjar o seu pequeno lugar. É este o contexto que tornou possível a liquidação de Joana Marques Vidal, a que os outros partidos não se opuseram, ao contrário do que teria acontecido se ainda houvesse oposição, e que o presidente da república, também por isso, consentiu.

O consenso, por mais alargado, nunca teria porém encorajado a oligarquia, não fosse outro factor: a percepção que têm da sociedade portuguesa, envelhecida, endividada e dependente. Os oligarcas convenceram-se de que em troca de mais uns euros de ordenado ou pensão, de preferência à custa dos impostos do vizinho, Pedrogão pode arder, Tancos pode ser assaltado, e a Procuradora-Geral da República despedida, que ninguém lhes pedirá contas. Sim, eles atreveram-se — porque aprenderam a desprezar-nos. Com razão?