A propósito do nosso atual governo e da aliança parlamentar que o suporta, construiu-se de algum modo a ideia de que a sua novidade tinha sobretudo a ver com a especificidade do caso português, nomeadamente com o facto de, após o 25 de abril de 1974, o Partido Socialista e o Partido Comunista (o Bloco de Esquerda não existia ainda) se terem politicamente afastado e, até agora, irremediavelmente oposto, com que constituíram uma espécie de bloqueio democrático, que António Costa teria agora conseguido romper.
Julgo, porém, que ninguém verdadeiramente acredita na possibilidade objetiva desta solução, apesar de ela se mostrar tantas vezes confirmada pela aparente normalidade das relações que mantêm entre si os três partidos, na qual justamente se funda o beneplácito do Presidente da República e da Comissão Europeia. O facto, porém, é que as pessoas intuitivamente sabem – e a história abundantemente o confirma – que, para lá das aparências, o referido bloqueio não pode de nenhum modo explicar-se como uma irracionalidade acidental do nosso sistema político.
Vale a pena lembrar, a este propósito, o folheto intitulado A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo, escrito em abril de 1920, por Vladimir Ilyich Ulyanov (mais conhecido por Lenine), para servir de base à discussão do II Congresso da Internacional Comunista, que se realizou em Petrogrado e em Moscovo, entre julho e agosto daquele ano. O grande objetivo desse congresso era afirmar e refletir a experiência política do movimento bolchevique na Rússia e consequentemente definir o modo da implementação internacional do comunismo, baseado na ditadura do proletariado e no poder dos sovietes. O manuscrito original apresenta, por isso, o seguinte subtítulo (que Lenine não incluiu em nenhuma das edições que preparou): Ensaio de palestra popular sobre a estratégia e a tática marxistas.
Essa estratégia e essa tática referiam-se, portanto, à conquista e ao exercício do poder pelos comunistas na época que se seguiu ao Tratado de Versalhes, coisa que, de um modo muito resumido, implicava uma atenção constante a dois diferentes perigos que, a todo o custo, era preciso evitar: de um lado, o extremo reformista, dos oportunistas, sociais-chauvinistas e sociais-traidores, dos Bernsteins e dos Kautskys, que, esquecendo a revolução proletária, pretendiam apenas reformar a sociedade a partir do interior do sistema capitalista, em razão do que estabeleciam alianças parlamentares e governativas com os partidos reacionários e liberais-burgueses; do outro lado, o extremo esquerdista, doença infantil dos sociais-revolucionários, anarquistas, utópicos e revolucionários de boca, que, esquecendo a realidade, pretendiam instaurar a sociedade comunista de um só golpe, a partir de nada, em razão do que rejeitavam qualquer tipo de compromisso parlamentar, ou sindical, ou outro, por meio do qual a revolução pudesse fazer caminho.
Ora, ao contrário dos socialistas, oportunistas e traidores, o comunismo não prescinde do seu fim em troca de pequenas vantagens negociadas com os partidos reacionários e liberais-burgueses; mas ao contrário dos esquerdistas, infantis e radicais, o comunismo também não rejeita, por princípio, a possibilidade de assumir, com aqueles partidos, os compromissos por meio dos quais possa fazer avançar a revolução. O verdadeiro comunismo, portanto, marxista e maquiavélico, não pode prescindir do seu fim – a revolução proletária, o derrube do capitalismo e a realização do socialismo, primeiro grau da sociedade comunista –, em vista do qual define um plano de ação e dispõe eficaz – e não moralmente – os meios necessários para a sua realização.
Para Lenine, com efeito, pelo menos na política, os fins justificam os meios. Caso a caso, por isso, os comunistas assumirão e cumprirão os compromissos que concretamente julguem mais úteis para a revolução proletária em marcha, não prescindindo nunca de juntar a essa ação legal, concretamente determinada pelas alianças e compromissos assumidos dentro do quadro de um sistema capitalista e burguês, a ação ilegal, clandestina ou subversiva, que agite, arruíne e destrua, parcial e/ou totalmente, esse mesmo sistema.
A primeira coisa que é preciso notar, portanto, é que socialistas, comunistas e esquerdistas são histórica e essencialmente inimigos, de tal maneira que até podem, nalguns casos, estabelecer alianças com os partidos reacionários e liberais-burgueses, mas não podem, por princípio, estabelecer qualquer tipo de associação entre si.
Daí que, naquele II Congresso, a Internacional Comunista tenha acrescentado aos seus estatutos as vinte e uma Condições de admissão dos partidos na Internacional Comunista (também aplicáveis aos partidos já filiados), segundo as quais se devia operar uma rutura total e definitiva não só com o socialismo reformista e centralista, consequentemente proibindo e expulsando todos os seus elementos (condição 7ª), mas também com o esquerdismo infantil e radical, promovendo uma participação ativa, legal e ilegal (condições 3ª e 4ª), em todos os níveis da ação política, nomeadamente o cooperativo, o sindical, o municipal e o parlamentar (condições 2ª, 9ª, 10ª e 11ª). E para que não haja dúvidas quanto à natureza e ao modo desta luta, estabelece-se ainda que cada partido, de acordo com o princípio do centralismo democrático, deve exercer a sua autoridade com uma disciplina de ferro, de tipo quase militar (condição 12ª), purgando periodicamente as suas organizações de todos estes elementos indesejáveis (condição 13ª).
Dir-me-ão, talvez, que as coisas mudaram e que hoje já não são bem assim. O que, num certo sentido, é verdade. Responderei, porém, chamando a atenção para os símbolos com que estes partidos se apresentam e para o caráter próprio das ações de cada um.
Quanto aos primeiros, no PS, temos uma mão esquerda erguida e fechada, que simboliza a união dos proletários em luta, há alguns anos substituída por uma rosa vermelha, que simboliza a luta contra a pobreza material e espiritual em que vive a maioria do proletariado, símbolo este que ainda mais decisivamente se afasta do comunismo e que, tal como o primeiro, é consentâneo com um partido que se propõe fazer reformas no interior do sistema capitalista (curiosamente, ou não, a imagem de um punho esquerdo levantado foi, nos últimos tempos, materialmente reassumida pelo PS). No PCP, temos uma foice e um martelo entrelaçados, que simbolizam a união dos proletários e dos camponeses em prol da revolução socialista, ambos em baixo de uma pequena estrela, que simboliza o progresso económico e social que resultará dessa mesma revolução, símbolo este que, apontando o fim a atingir, acentua o esforço necessário para alcançá-lo. No BE, temos somente a estrela vermelha, símbolo este que põe a tónica absolutamente no fim a atingir – a sociedade socialista –, desvalorizando assim os esforços e os compromissos que terão de fazer-se no caminho.
Mais objetivamente, porém, temos o caráter próprio das ações de cada um (ainda há pouco tempo bem visível nas diferentes respostas que deram à crise política na Venezuela). No PS, temos a resposta legal, que, dando-se sempre dentro dos limites de um determinado sistema, dispõe, contudo, de uma enorme maleabilidade, já que, de acordo com o seu conceito de justiça, os socialistas normalmente se julgam um bocadinho mais iguais do que os outros (veja-se, por exemplo, o caso das cativações orçamentais). No PCP, temos a resposta legal e a clandestina, segundo a qual se sentam à mesa das negociações ao mesmo tempo que ativamente as boicotam (veja-se, por exemplo, o caso da greve na Autoeuropa). No BE, temos a resposta subversiva, que, de um modo infantil, intransigente e radical, procura atingir de um só golpe, mortal e definitivamente, a totalidade do sistema (veja-se, por exemplo, o ataque aos eucaliptos capitalistas no caso dos incêndios deste Verão).
Dir-me-ão, no entanto, que já houve outras exceções. O que, num certo sentido, também é verdade. Responderei, porém, que elas foram justamente exceções, admitidas somente num determinado período de tempo em vista de um mal muitíssimo maior.
É o caso evidente das famosas Frentes Populares, que, propostas em 1935, por Georgi Dimitrov, no VII Congresso da III Internacional, que as aprovou, permitiram uma aliança excecional entre socialistas, comunistas e esquerdistas, que logo se materializaria em França e em Espanha, como forma de combater «o fascismo, a ofensiva capitalista e a ameaça de uma guerra imperialista».
É este, de facto, de um modo muito evidente, o cimento com que – não substancial, mas acidentalmente – se tenta unir a geringonça, que por isso procurou frequentemente conotar a ação governativa de Pedro Passos Coelho (mais do que a do PSD!) com o fascismo, o grande capital e o neoliberalismo imperialista e burguês, com isto esquecendo liminarmente o facto de ele ter executado um programa de assistência económica e financeira que impunha um conjunto de medidas preparadas e assumidas pelo governo presidido por José Sócrates, com o qual António Costa, esse sim, de várias formas ativamente colaborou.
A Passos Coelho, na verdade, pode sobretudo criticar-se o facto de, findo o programa de assistência e a coligação com o CDS, não ter querido ou sabido comunicar eficazmente o seu projeto para o país, razão pela qual foi forçado a assumir e a defender somente a sua ação no anterior governo. Parece-me evidente, contudo, que as conotações que quiseram impor-lhe, bem como o ódio que lhe votaram, eram obviamente desadequados, tendo apenas justificação no facto de que disso dependia – e depende – a própria existência da geringonça.
Socialistas, comunistas e esquerdistas, com efeito, têm como único programa (como agora voltará a ver-se no orçamento do Estado para 2018) a reversão daquilo que, enquanto primeiro-ministro, Passos Coelho fez ou terá feito. Em nada mais conseguirão pôr-se de acordo, pelo que a possibilidade da sua ação tem a duração limitada pela memória que os portugueses tenham das maldades que, segundo eles, Passos Coelho lhes fez.
Na próxima legislatura, porém, seria obviamente muito difícil comunicar vividamente às pessoas os horrores de uma já longínqua governação de Passos Coelho, pelo que ninguém verdadeiramente acreditava que, antes ou depois das eleições legislativas, pudesse de novo construir-se entre as esquerdas qualquer tipo de programa concertado ou concertável (aqui tanto faz escrever com “c” ou com “s”). Até lá, portanto, era preciso encontrar a melhor maneira possível de resolver esta aliança excecional que estabeleceram, coisa que não é fácil fazer entre inimigos declarados que não confiam uns nos outros.
Para a estratégia e para a tática marxistas, assim, era fundamental que, no início de 2018, no rescaldo das eleições autárquicas, Passos Coelho saísse do PSD (preferencialmente rejeitado e renegado), deste modo permitindo um amigável deslaçamento da geringonça e um honroso regresso dos seus membros à situação de inimizade originária.
Esta era uma condição necessária para que, no contexto muito provável de, em 2018 e 2019, termos um fraco crescimento económico e um abrandamento da ajuda financeira europeia, os três partidos possam começar progressivamente a afastar-se, sem que nenhum deles fique eleitoralmente refém dos restantes. Depois das eleições, portanto, tudo voltará ao normal e eles poderão uma vez mais abertamente prosseguir ações políticas autónomas, antagónicas e inconciliáveis entre si.
Ora, Passos Coelho saiu – ou está de saída –, o que foi claramente visível em toda a recente polémica sobre a gestão dos fogos florestais. De repente, com efeito, a culpa deixou de ser dele! Foi essa a grande surpresa de António Costa, para a qual não estava manifestamente preparado. Perante a ausência de Passos Coelho, a responsabilidade passou a ser sua, o que põe o difícil problema de saber como é que, nos próximos dois anos, irá funcionar a geringonça.
É esta a última questão que quero pôr. Todos têm dito, com efeito, que, apesar de tudo, a geringonça tem funcionado. O que, num certo sentido, é verdade. Responderei, porém, que de pouco serve que uma coisa funcione quando não se sabe bem para quê nem a que preço.
É preciso dizer, antes do mais, que a geringonça tem indiscutivelmente funcionado, já que, contrariamente ao que muitos vaticinaram, o governo se mantém em funções. Poderá dizer-se que é poucochinho, mas o facto é que a coligação que o suporta tem sabido entender-se sem grandes problemas ou sobressaltos, de tal maneira que agora quase todos auguram que assim se manterá até ao fim, o que num país onde, até hoje, por uma só vez um governo de coligação (o que nem é o caso deste) concluiu a respetiva legislatura, tem sem dúvida que registar-se positivamente.
Coisa diferente, porém, é saber se tem funcionado bem, pois que isso obrigaria a conhecer um programa por relação ao qual o seu desempenho pudesse medir-se. O seu programa, contudo, tal como atrás já dissemos e vem claramente expresso em três diferentes posições conjuntas (!), resume-se na missão imposta pela «necessidade patriótica» que obriga a «pôr fim a um ciclo de degradação económica e social que a continuação de um governo do PSD/CDS prolongaria», não indo, assim, além do enunciado de algumas medidas com as quais se procura desfazer – e não fazer! – «as políticas que traduzem a estratégia de empobrecimento seguida por PSD e CDS.»
Dizer que a geringonça tem funcionado, portanto, quer apenas dizer que ela tem eficazmente impedido o governo de Passos Coelho, sendo justamente nessa medida que se pode também dizer que ela tem permitido o governo de António Costa. As tão propaladas virtudes negociais do nosso primeiro-ministro, com efeito, não vão além do âmbito estrito da conquista e da manutenção do poder. Tudo o resto é uma farsa com que, num período limitado no tempo, se tenta enganar toda a gente.
O maior problema, no entanto, do ponto de vista do país, não está naquilo que o governo aberta e assumidamente faz – ou melhor, desfaz! –, pois que as nossas instituições mantêm uma certa autonomia e a ação do governo é alvo de algum escrutínio público. O maior problema está, por um lado, naquilo que o governo escondidamente faz e, por outro, naquilo que escondidamente não faz.
Quanto ao que assumidamente faz, primeiro, é bom lembrar que, contrariamente ao que nos dizem, a maior parte dos bons resultados económicos alcançados nos últimos dois anos (sobretudo no que diz respeito ao défice, às exportações, ao turismo e ao emprego) continua as tendências claramente iniciadas no tempo do anterior governo, pelo que não pode seriamente sustentar-se que esses resultados se devem à estratégia de devolução de rendimentos e de direitos prosseguida pelo atual governo, sobretudo quando essa estratégia se afirma em oposição absoluta às políticas do governo anterior (o qual também propunha, aliás, embora com um diferente ritmo, repor a maior parte desses rendimentos).
Quanto ao que escondidamente faz, depois, julgo que é razoável e até prudente suspeitarmos que tenha havido cedências que não conhecemos às exigências concreta e sucessivamente apresentadas, ora pelo PCP ora pelo BE, no contexto do seu apoio a este governo, quanto mais não seja porque não acreditamos no silêncio de Mário Nogueira ou na conivência de Catarina Martins. Infelizmente, aliás, a experiência diz-nos que o país irá muito provavelmente ressentir-se desta sua temporária subalternização ao comunismo em nome de uma estratégia partidária de poder, cujas consequências – nas leis, na política, na economia, na administração pública, nas finanças, na saúde, na educação… – irão lenta mas inevitavelmente surgir.
Quanto ao que escondidamente não faz, por último, é bom estarmos também preparados para as consequências das oportunidades perdidas, pois que metas pode traçar um governo que é sustentado por uma coligação parlamentar na qual um dos parceiros faz parte de um sistema que os outros dois querem destruir? É por esta razão, aliás, que sempre que o governo fala das reformas, dos investimentos e das obras públicas, que diz serem necessários para os próximos dez anos, pede um consenso alargado ao PSD. Se formos otimistas, portanto, diremos que, destes dois consensos, só um será verdadeiro. Se formos realistas, porém, saberemos que, no que é decisivo, nada provavelmente será feito.
Do ponto de vista internacional, além disso, apesar da incapacidade e do silêncio do governo português serem mais ou menos indiferentes em casos como os da Coreia do Norte ou da Venezuela (na medida em que a solução desses problemas não é de nenhum modo afetada pela nossa insuficiência governativa), convém perguntar, no entanto, que estratégia tem o governo em relação ao Brexit, enquanto país que somos da União Europeia e antigo aliado do Reino Unido? E como nos temos posicionado, no contexto de uma afirmação portuguesa na Península Ibérica, perante a transformação em curso das relações entre a Espanha e a Catalunha? E o que fizemos para defender os nossos valores e assegurar os nossos interesses no contexto da mudança de lideranças que está a acontecer em Angola e em Moçambique? E como nos temos posicionado perante a terrível crise política do Brasil? Creio, infelizmente, que a resposta seja sempre a mesma.
Concluindo, agora que já todos sabemos que Passos Coelho não ficará à frente do PSD, está aberta a corrida para a escolha do seu novo líder e do respetivo programa. Mais do que esperar deste processo grandes novidades ou mudanças, impõe-se que ele seja clarificador, tanto de um ponto de vista ideológico como de posicionamento em termos de conquista do poder. Isto é fundamental para que, passado este intervalo em que vivemos (seria talvez melhor aqui falar em interregno), todos os partidos, de maneiras diferentes, sejam obrigados a apresentar e a discutir, de dentro para fora, os seus próprios projetos, sem o que não teremos uma representação política credível e racional. Se assim não for, com efeito, corremos o risco de o atual projeto de conquista do poder no PS nos voltar a sair a todos muito caro.
Gonçalo Pistacchini Moita é investigador de filosofia na Universidade Católica Portuguesa