A regularidade da corrupção esgotou a capacidade insultuosa do dicionário da língua portuguesa numa monotonia crítica sem qualquer efeito dissuasor, pois continua crescente o esquadrão engravatado de prevaricadores que é imune a enxovalho. Donos de um ego sem fim, estes perversos veem no debate jornalístico e televisivo o entretenimento de gente como nós, a seus olhos, certamente, criaturas sem agudeza mental suficiente para desempenhar actividades estimulantes que incluem logros tendentes a benefício fiscal e a perdão judicial.

A corrupção ultrapassa todos os dias o limite crítico, que julgávamos já atingido, e arruína o legado dos nossos filhos e netos irremediavelmente manchado por escandalosas fraudes, autoritarismos, injustiças e outras manifestações de baixo desenvolvimento moral, comportamentos em consenso reprováveis, até mesmo na opinião dos próprios corruptos, facto que eleva a indignação geral à náusea. É esta sociedade nauseada pela corrupção, que a admite, por vezes inconscientemente, praticando-a, no aliciamento, na influência, na obtenção de vantagem usando cargos e imagem, práticas assentes na reciprocidade de interesses banais, da rua ao trabalho, da família às redes sociais. Parece institucionalizada a lógica de “uma mão lava a outra”.

Cumpre-se o padrão logo no topo da pirâmide social, desestrutura em cascata, matriz moral inquinada, por onde escorre indecência dos mais altos cargos centrais, às autarquias, instituições e organismos diversos. A corrupção formal e informal, move-se em todos os quadrantes sociais onde paira a anarquia moral e fará desabar o equilíbrio social a partir da quebra de confiança dos cidadãos na superestrutura do Estado. Assim se encontra Portugal, em rota decrescente no Índice de Percepção da Corrupção (CPI) e por isso a baixar a qualidade da democracia como frisa a Presidência da República.

A este propósito, e com notável clareza, Conceição P. Teixeira (2018), no seu ensaio “Qualidade da democracia em Portugal” inclui estudos de investigação (André Freire, José Manuel Viegas, Ana Belchior 2007 a 2013) indicadores de que a qualidade da democracia em Portugal enferma de paradoxo, visível na profunda desconfiança dos Portugueses relativamente aos partidos políticos, pois, ao mesmo tempo, consideram os mesmos partidos indispensáveis ao funcionamento da democracia. A corrupção surge certamente como principal activo de corrosão na relação entre eleitores e seus representantes, na medida em que não se vê assegurada uma democracia de qualidade, entendida como regime estável e justo que assegura a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos, através do funcionamento correcto das instituições.

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A sociedade indignada face à sucessão dos processos judiciais de banqueiros, figuras do Estado, empresários e autarcas, não confia na classe política, que considera genericamente corrupta, mas estranhamente, aguarda soluções legislativas e reformas centrais de combate à corrupção. Ora, tal sentimento é improcedente, pois confere a mesma sensação quando imaginamos a raposa a guardar o galinheiro. Poucos acreditam na eficácia normativa e cumprimento das regras, que já se esperam a priori violadas ou esquecidas por parte dos emissores responsáveis.

O comportamento arbitrário firma-se na classe política e coincide com o facto de o sistema de governo português, por força das maiorias parlamentares conseguidas, e se ter transformado naquilo que alguns autores chamam de “semipresidencialismo de Primeiro-Ministro”, dando ênfase à primazia do Governo face aos outros órgãos de soberania e, essencialmente, ao papel central assumido pela figura do chefe do Governo (Conceição P. Teixeira, 2018). Assim, igualmente de forma contraditória, a preferência da sociedade portuguesa vai para o conforto de líderes paternalistas, bem sabendo que tal preferência trás riscos à democracia e se exprime já na ineficácia do debate parlamentar, ensombrado pelo ónus da instabilidade política, relembrada e diabolizada aos atrevidos ameaçadores do statu quo pelos detentores do poder.

Parece-nos urgente pensar a corrupção como crise moral da qual ninguém pode demitir-se. Todos os cidadãos são responsáveis pelos líderes que elegem, de quem esperam boa organização da sociedade de acordo com critérios de justiça e defesa do bem comum. Ora, tais critérios são apenas possíveis a agentes políticos vindos de uma sociedade justa, com valores morais incutidos no processo de socialização dos seus indivíduos, desde a infância, quando se inicia o desenvolvimento do julgamento moral, no qual Piaget (1896-1980) definiu a moralidade como uma atitude de respeito pelas pessoas e pelas regras.

A “opinião política pública” que vemos, em geral malformada, não é fruto do acaso, parece ser deriva do esforço de todos quantos beneficiam do alheamento geral do povo sobre as verdadeiras questões políticas. A falta de conhecimento e o desinteresse da sociedade pela vida política têm sido grandes aliados de quem quer manter ou conquistar o poder, sendo maior o interesse dos partidos em estabelecer uma relação passional com os eleitores, do que apresentar soluções para os problemas do país. Mais importante do que apresentar um bom programa, que poucos leem antes de votar, é cativar o coração do eleitorado.

Estivesse a sociedade civil na posse de boa formação política e começaria certamente por questionar o modelo de organização partidária, em que os partidos, soberanos na escolha dos nomes das suas listas, têm por base critérios de conveniência e conluio, cada vez mais afastados da competência, que levam à pobreza de opção no momento de sufrágio. Não resta alternativa ao eleitor se não escolher dentro do que já foi cirurgicamente escolhido pelos partidos – gente obediente com sede de poder e pouca formação, que em hipótese alguma causará problemas à máquina partidária.

A exigência de agentes políticos que privilegiem o principio básico da separação de poderes e não a sua concentração, bem como a estruturação ética da sociedade no cumprimento do dever, em igualdade de direitos, são factores estruturais na prevenção da corrupção, fenómeno com dimensão planetária, afectando qualquer país na proporção directa do seu desenvolvimento moral, onde a punição surge como instrumento pedagógico, factor de pacificação social, clivagem entre bem e mal.

Longe de esperar um mundo de homens límpidos, evoluir é palavra de ordem. Todos achamos que temos de o fazer, mas isso nem sempre significa melhorar. Evoluir como positividade, é ter noção do papel das nossas escolhas. É preciso “formação contínua” para a cidadania e saber analisar a torrente de informação e manipulação política a que estamos sujeitos, para que se opere evolução positiva através do discernimento, humanidade e inteligência.

Que adianta ser bom num mundo corrupto? Na primeira Epístola de S. Paulo aos Coríntios diz-se: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas me convêm.” Posso fazer qualquer coisa fazendo uso da minha liberdade, mas não devo fazer o que degrada a minha comunidade, a minha família, o meu povo e o meu país. Ninguém é bom ou mau em essência, mas sim no comportamento. Como somos nós, quando ninguém está a ver?