Será então a actual situação política em Espanha, consecutiva às eleições legislativas de 20 de Dezembro passado, bem como às sucessivas eleições autonómicas recentes, semelhante à portuguesa, como o próprio líder do partido socialista espanhol (PSOE) insinuou quando veio a Lisboa há dias conversar com o seu homólogo português? Não creio. A aparente concordância entre o PS e o PSOE é mero fruto do confusionismo dos dois partidos, ambos relegados para claro segundo lugar nas legislativas dos respectivos países. E a razão não reside apenas, conforme é dito por vezes, na diferente natureza do sistema partidário de cada um dos países.
Em Portugal, o acesso do PS ao poder com a promessa de apoio parlamentar dos partidos de protesto à sua «esquerda», deve-se exclusivamente ao aproveitamento oportunista do dispositivo constitucional português, segundo o qual o parlamento eleito em Setembro passado não pode ser dissolvido durante os seus primeiros seis meses. De outro modo, o Presidente da República cessante teria convocado novas eleições legislativas e o PS seria, seguramente, sancionado por uma boa parte do seu eleitorado e por muitos abstencionistas de Setembro. Em consequência, a «frente popular» ter-se-ia tornado impossível, confirmando a coligação PSD+CDS como vencedora das eleições.
O contexto político desse oportunismo constitucional não passa de uma ideia falsamente ingénua de reversão da austeridade aplicada pelo anterior governo. Aliás, aplicação conforme ao acordo com o memorando de ajustamento assinado pelo PS com os credores internacionais das dívidas criadas por esse mesmo PS. O contexto parlamentar tem pois importância mas está a ser posto à prova todos os dias e não se sabe quanto tempo durará este governo das reversões.
Já em Espanha, o grau de ajustamento não se comparou ao português; em contrapartida, a erosão do bipartidarismo (PP+PSOE) foi muito mais forte do que em Portugal, vendo-se reduzido a 50% dos votos comparado com 70% entre nós. Acresce que, tanto em Espanha como em Portugal, foram os partidos que geriram o ajustamento os mais votados. Daqui não se tiram portanto paralelismos nem diferenças decisivas. Ora, na minha opinião, são outras as diferenças que contam e todas elas remetem para a história política remota e recente de Espanha, história essa que Portugal não partilha. São quatro os factores principais que definem o actual contexto político-partidário espanhol.
O primeiro é o impacto diferido da guerra civil de 1936-39, que não existiu em Portugal nem na Itália, mas sim em Espanha e na Grécia, deixando uma marca muito mais duradoura do que se poderia imaginar nos conflitos actuais: basta pensar nas alusões à dívida de guerra alemã na Grécia e, em Espanha, nas campanhas constantes em torno da memória da guerra civil, agora assumida pelo «Podemos», que foi logo falar em mudar os nomes das ruas de Madrid… Quem tem meia-costela espanhola, sabe que isso é hoje em dia uma falsa questão e – pior – manter uma ferida aberta a sangrar. Há, pois, uma marca histórica que continua a servir de fermento às pretensas identidades de «esquerda» e de «direita» que alimentam tanto os pequenos como os grandes partidos em Espanha.
Por sua vez, esse fundo adversarial foi, por assim dizer, cruzado ao longo do regime democrático por uma cultura partidária de corrupção que não é, provavelmente, maior do que em Portugal, mas tem sido muito mais denunciada e por vezes levada até às suas consequências penais contra os dois principais partidos. Ora, são estes mesmos partidos, PP e PSOE, que agora teriam de se unir para formar um governo com maioria parlamentar. Devido, porém, ao peso do cisma histórico e da corrupção recente, preferem aparentemente o caos político do que ceder às vantagens de um «bloco central». Por seu turno, novas formações partidárias como «Ciudadanos» e «Podemos» só cresceram da forma que se tem visto por causa da corrupção que mina o sistema bipartidário. Em Portugal, essa repulsa tem levado sobretudo os eleitores para a abstenção, segundo a qual… «os partidos são todos iguais»!
Em terceiro lugar, factor inexistente entre nós mas, também ele, cumulativo da guerra civil, o espaço político espanhol está hoje atravessado de novo pela questão das autonomias e, no caso concreto da Catalunha, por uma forte aspiração independentista que os portugueses deveriam ser, aliás, os primeiros a perceber e que acaba de dar neste preciso momento mais um passo com a formação de um governo autonómico independentista. A esses três eixos acresce um conflito inter-geracional profundo, próprio das sociedades muito envelhecidas, como é também o caso português (o BE é uma manifestação disso), de tal maneira que este feixe de efeitos cruzados não só pôs em causa o bipartidarismo, como se arrisca a impedir qualquer coligação, seja esta de «direita» ou de «esquerda». Nem o oportunismo catalanista do «Podemos» o deixa fazer aliança com o PSOE soberanista, nem a repulsa pela corrupção deixa os «Ciudadanos» aliar-se ao PP. Assim, o eleitorado espanhol ver-se-á provavelmente forçado a novas eleições e a deixar de se abster, a fim de escolher o «mal menor», como acontece em geral nas eleições.
(Declaração de interesses: não tenho dupla nacionalidade mas sou meio-espanhol com afinidades familiares à Catalunha e ao País Basco.)