As últimas minudências da Lei das Rendas já aqui tiveram o seu explicador. Mas a propósito do regime de arrendamento urbano — através do qual vários governos impuseram aos proprietários servidões “sociais” que, a existirem, competiam ao Estado –, é talvez necessário dizer alguma coisa mais geral. A lei satisfez uma das condições negociadas pelo Partido Socialista para evitar a bancarrota. Os méritos e deméritos do mecanismo de descongelamento de rendas ou do procedimento especial de despejo são irrelevantes para o que me interessa agora. Foi uma das poucas “medidas” dos últimos três anos que dispensou o governo de demonstrar que alguma coisa tinha mudado. Mas o que a proposta de revisão sugeriu este mês, é que a lei não configurava um novo regime, mas assinalou apenas o princípio de uma deriva legislativa sem termo certo. Podia arranjar outros exemplos. A conclusão seria a mesma: em Portugal, não existe a lei — existe apenas um processo legislativo em curso.

Bem sei que as leis mudam, que podem ser aperfeiçoadas, que devem ser actualizadas, mas onde as leis mudam constantemente, seja por que motivo for, perde-se a grande vantagem da lei, que não é apenas os direitos e deveres que institui, mas a estabilidade, a previsibilidade, a garantia que dá à vida em sociedade. O contrário da lei não é necessariamente a injustiça, mas é fatalmente a arbitrariedade, mesmo que a arbitrariedade tenha a forma de leis sucessivas ou de sucessivas revisões da mesma lei. A lei em Portugal, perdida numa selva de emendas e de excepções, desmente todos os provérbios: nunca é dura, nem igual para todos. As leis fiscais representam, a esse respeito, o auge da instabilidade legislativa.

Todos, em Portugal, prometem mudanças. Prometeu-as o governo, há três anos. Promete-as agora o PS, para o próximo ano. No caso do governo, o que vimos foi que o novo quadro legislativo nunca estabilizou nem foi completamente desenvolvido: parte das “reformas estruturais”, por exemplo, foram deixadas em herança a próximos governos. No caso do PS, desconfiamos que, limitado pelas suas divisões e prováveis alianças, tudo poderá ainda ser mais volátil e indefinido.

A importância da estabilidade parece escapar a muita gente. Estabilidade de uma governação assente numa maioria coerente e em sintonia com o Presidente da República a eleger em 2016. Estabilidade de um projecto bem estudado, que não suscite irritações constitucionais, ou que as aponte desde logo, para resolução prévia. Estabilidade de uma administração com fins, meios e procedimentos definidos e transparentes. Uma estabilidade que nos garantisse que impostos temos que pagar, que salários vamos receber, que pensões podemos esperar, que cuidados de saúde estão ao nosso alcance, ou ainda, por exemplo, que tipo de contrato temos com os nossos senhorios ou com os nossos inquilinos. É que sabendo isso, poderíamos prevenir-nos, adaptar-nos, habituar-nos. Pedem-nos trabalho, poupança, investimento. Mas quem pode comprometer-se num país em fluxo, onde tudo passa como numa torrente confusa? Talvez nos convenha ter leis melhores e instituições mais perfeitas, mas convém-nos ainda mais ter leis firmes e instituições consolidadas.

Portugal é um país onde muita gente nos promete muita coisa, mas onde ninguém pode garantir nada, como reconhecia há dias o Ministro da Presidência. Perante este carrossel de incerteza, Mirabeau, entre nós, não pediria audácia, mas estabilidade: estabilidade, sempre estabilidade, e mais estabilidade. Quem é que nos pode dar isso? Como é que todos podemos contribuir para isso? Eis as perguntas a que a oligarquia política, se quiser ser relevante, deve responder.

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