O fim de cada ano que passa é habitualmente tempo de reflexão sobre o ano que passou e aquele que virá, sobre os ontens que marcaram e os amanhãs que cantam. Quanto ao annus horribilis de 2020, os jornais decretaram o que os comentadores já tinham anunciado, é um ano para esquecer. E, bem assim, cabe aguardar com expectativa o ano de 2021, que trará a vacinação geral e o fim das restrições e dificuldades infligidas pela actual pandemia.

Sem desprimor pelo juízo sobre o tempo que a passagem de ano do calendário gregoriano desperta, parece-me mais importante pensar no juízo sobre o tempo a que anualmente o Natal nos convoca. Esta reflexão torna-se particularmente oportuna neste momento em que, por um lado, o que lemos e ouvimos nos parece convidar a um tempo de suspensão até à vacinação da população, enquanto, por outro lado, o tempo de Natal nos convida a viver o presente como tempo favorável à vida.

O tempo de Natal tende a acender em nós as mais diversas e sentidas emoções. As ruas são tecidas por um manto de luzes que dão vida e cor à cidade, as músicas de Natal enchem-nos de comoção e alegria, os almoços e jantares esmeram-se no gosto de bem fazer e bem comer, as famílias reúnem-se em número e união, os gestos e presentes atenciosos multiplicam-se e até aquele vizinho mal encarado, ou aquele intragável conhecido, merecem da nossa parte as mais simpáticas palavras. São sinais da quadra natalícia. Mas os sinais são isso mesmo, indicações, referências, manifestações de algo que vem e para o qual nos movemos. Se pararmos nos sinais, ficaremos na espuma e à superfície do tempo de Natal, sem mergulharmos no seu significado.

Afinal, todos nós sabemos, de um modo ou de outro, no que é que se podem revelar os sinais do tempo de Natal. As luzes intrusivas do consumismo e da publicidade por meses a fio, as músicas, um conjunto de clichés e sentimentalismo que ensurdecem de barulho e vazio, os almoços e os jantares, um tempo de pratos sempre iguais e maledicente crítica gastronómica, as reuniões familiares, o reavivar de tensões mal resolvidas, a penosa recordação de vidas desavindas, separações ou divórcios, os gestos e os presentes, um conjunto de obrigações forçadas e feitas em modo piloto automático, e as palavras, essas, expressões sem outro horizonte que não o de quebrar o silêncio.

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Assim, levanta-se a questão de saber, afinal, como se pode viver este tempo de Natal e os seus sinais? Que significado tem o Natal no tempo concreto da nossa vida, da minha vida?

Para perceber o Natal devemos ir à sua origem, o nascimento do Deus Menino em Belém. A resposta pode não parecer original, mas é-o em toda a linha. A promessa que este nascimento traz consigo é um factor sempre novo que se introduz na vida e na história do mundo e de cada pessoa, dando nova alegria, novo significado ao tempo e nova esperança.

O Natal quebrou o tempo da história do mundo com o início de uma nova era, há cerca de 2000 anos, que dividiu a história a.C. e d.C. A partir desse momento, Deus fez-se pequeno e homem para ajudar os homens a tornarem-se grandes e filhos de Deus.

Desde essa noite, em que o príncipe da alegria e da esperança nasceu num estábulo miserável entre animais, percebemos que a causa da nossa alegria e da nossa esperança está em segui-lo e não no nosso dinheiro, background, mérito pessoal ou nas nossas diversas capacidades. A razão da nossa esperança deixa de passar pela nossa capacidade de produção profissional ou social, como tantas vezes nos classificamos numa espécie de catálogo de maquinaria via Linkedin ou Facebook. Com a presença daquele que nasceu para nos salvar, tornamo-nos livres e não nos definimos, nem dependemos, dessas análises e orçamentos da vida, tantas vezes desumanos.

Naturalmente, isto não significa descurar o trabalho ou a vida social, bem pelo contrário! O Natal propõe-se, também, quebrar e transformar o tempo da vida de cada um de nós. Ao deixar a Sua presença nascer e crescer na nossa vida, o tempo e aquilo que fazemos ganham outro significado e outro sabor. As circunstâncias da vida, com as quais diariamente nos cruzamos, deixam de ser fruto do acaso, do azar, da sorte ou do mero mérito pessoal. Passam a ser momentos que nos são dados para viver e crescer com a Sua presença, para nos colocarmos do lado bom da batalha, na amizade com Ele, vivendo com uma intensidade e alegria que nunca tínhamos imaginado.

A presença de Aquele que nasceu entra na nossa vida através de acontecimentos diários. A pessoa que conheço e que passa por mim na rua já não é um encontro fruto do mero acaso, nem se justifica não lhe falar por não me apetecer, se ela se cruza comigo alguma razão haverá e vale a pena estar à altura do desafio. Este novo significado da realidade como algo que nos é dado por Alguém e que devemos viver como resposta a (e com) esse Alguém, torna tudo diferente. A presença e o cuidado no trabalho, numa festa, na amizade, ou até em momentos mais banais como o trânsito, num estádio, numa conversa com um tema ou uma pessoa inesperados, tudo, sem excepção, passa a ser vivido com maior empenho, dedicação e gosto.

Através desta modalidade de vida que nos é proposta no Natal, conseguimos mergulhar nos sinais do tempo de Natal e evitar ficar na espuma dos mesmos. Isto é, assim, assistimos maravilhados à beleza das luzes e das músicas de Natal que nos são dadas, bem como à qualidade e ao esmero da gastronomia da quadra, empenhamo-nos em refazer amizades e renovar a união da nossa família do modo que for possível, em tratar bem os desconhecidos ou aqueles por quem não sentimos grande afeição, fazendo, como há muito diz o nosso povo, o bem sem olhar a quem. Tudo isto não é fácil, naturalmente, e será um caminho com altos e baixos, mas torna-se possível com Aquele que nasceu.

Ora, se o tempo que vivemos nos é dado por Aquele que nasceu, torna-se claro que o tempo favorável é o agora, é no presente que recebo as circunstâncias a que Aquele me desafia. Por outras palavras, como dizia um provérbio citado há tempos pelo Papa Francisco “não há santo sem passado, nem pecador sem futuro”, interessa o agora e o que nele fazemos.