Enquanto a campanha eleitoral se prolonga já com pouco tempo para surgirem novidades susceptíveis de alterar significativamente as expectativas dos partidos políticos e dos seus apoiantes, o governo actual continua a não ter pudor em utilizar mais uma vez os procedimentos jurídicos para interferir com o funcionamento da justiça e da vida política em Portugal. Foi o que aconteceu há dias com um pedido de esclarecimento aparentemente ingénuo do primeiro-ministro à Procuradoria-Geral da República (PGR).
Tratava-se da legislação que ainda regula o comportamento dos membros do governo em relação aos contratos do Estado com empresas nas quais participa financeiramente algum dos seus familiares próximos. Até há dias, todos supúnhamos que a lei ainda vigente era tão cristalina que o dito governo até já introduzira legislação a fim de a mudar e assim facilitar, senão favorecer, futuros negócios dos governantes e seus familiares com o Estado, isto é, com o dinheiro de todos nós!
Mas não. Em véspera de eleições, o governo não podia tolerar mais uma investigação do Ministério Público que acaba de designar como arguido mais um secretário de Estado, um antigo autarca socialista de nome Artur Neves que se demitiu, bem como o presidente da chamada Protecção Civil envolvido igualmente num caso relacionado com os incêndios florestais de 2017, os quais ficarão a ser para sempre o calcanhar de Aquiles de António Costa.
Como é evidente, tais revelações não podiam continuar depois de tantos casos de corrupção moral e económica cometidos por membros de sucessivos governos PS ou por protegidos seus, sob pena de tirarem votos ao partido para a tal «maioria absoluta» que lhe permitiria fazer o que quisesse! Foi assim que, sem pudor, o ministro dos Negócios Estrangeiros interveio publicamente para exprimir essa ideia extraordinária segundo a qual «a lei não é para interpretar literalmente»!
Vai daí, o primeiro-ministro anuncia com idêntico impudor que ia solicitar imediatamente um esclarecimento da lei à nova Procuradora-Geral que, por sinal, ele nomeara há exactamente um ano, com o imediato apoio do Presidente da República, a fim de substituírem a antiga PGR sem nunca dizerem porquê. Sem surpresa, a nova Procuradora-Geral confirmou que «não se pode interpretar a lei literalmente»! Então como? Como o primeiro-ministro quer?
É impossível, na conjuntura actual, não nos recordarmos como a forte sacudidela dada pela anterior PGR, Joana Marques Vidal, no torpor da justiça portuguesa em relação a pessoas gradas, como José Sócrates ou Ricardo Salgado, desagradava obviamente ao PS e aos amigos do dono do BES. Se é verdade que «justiça lenta não é justiça», então podemos ter a certeza que acusações como as que são feitas a Sócrates, detido em 2014 e até hoje arguido à espera de julgamento, são possivelmente verdadeiras e condenáveis, mas não são justas. O que não significa, antes pelo contrário, que os acusados não sejam julgados e, das duas uma, condenados ou absolvidos. Na dúvida, são muitos os eleitores que protestam contra a falta de justiça e genericamente contra os políticos. Depois, admiram-se com a abstenção!
Como é óbvio, se os arguidos fossem julgados e se se confirmasse que muitos ou alguns deles são efectivamente culpados, o actual governo e o seu partido não escapariam a uma severa punição política. É por isso que o governo mantém o silêncio e nós ignoramos quando será levantado o segredo que pesa sobre essa corrupção em grande escala que tanto contribuiu para a falência de 2011 e para o atraso do país em relação aos nossos competidores, seja no plano económico ou sócio-cultural. Cinco anos com um crime daqueles às costas a escorrer corrupção por todos os lados sem se lhe pôr termo, pese a quem pese, só podem desmoralizar – no sentido forte da expressão – a nossa sociedade.
Ora, quer se trate de mais um desses pretensos segredos de justiça ou, como é lícito pensar, de um ferrolho aplicado pelo governo aos tribunais e aos próprios réus que não beneficiam de uma «confissão premiada» à brasileira, assim como aos eleitores impotentes perante o interminável passar dos anos, é difícil acreditar que tudo isto acontece por obra e graça não se sabe nem saberá de quê nem de quem!
Outro facto relevante em que as pessoas não pensam habitualmente é que, desde a eleição do actual governo há 4 anos até às legislativas do mês que vem, perto de meio milhão de jovens portugueses cumpriram entretanto 18 anos e ganharam a cidadania eleitoral, indo votar pela primeira vez a fim de eleger o novo governo… Como julgarão esses jovens um sistema político em que eventuais criminosos que atentaram gravemente contra o país estão há mais de uma legislatura e, provavelmente, também na próxima sem ser condenados nem inocentados? Eu teria vergonha!