Hoje de madrugada pudemos presenciar o debate entre os candidatos a vice-presidente dos EUA. É um lugar com pouco poder efetivo, mas cujos ocupantes são os sucessores designados por lei no caso de morte ou incapacidade do Presidente norte-americano. Ora, os dois candidatos a presidente Donald Trump, com 74 anos, e Joe Biden, com 78 anos, são os mais idosos da história norte-americana. E nos últimos 120 anos foram cinco os vice-presidentes a mudarem-se para a Casa Branca por morte de um presidente. O debate desta madrugada teve ainda a vantagem de ser inteligível e respeitar as normas estabelecidas. Mas justifica-se tanta atenção em Portugal e no resto da Europa a quem será o presidente e vice-presidente de um país noutro continente?

A fascinação europeia com o espetáculo político norte-americano

Há uma persistente fascinação europeia com as Américas. Dezenas de milhões de europeus emigraram para essas paragens desde o século XVI à procura do Eldorado, no Peru ou em Silicon Valley. Na Europa essa fascinação manifesta-se também numa crítica obsessiva de muitos a tudo o que venha da América do Norte. Esta fascinação com tudo o que vem dos EUA tem um lado superficial. E no que diz respeito a debates eleitorais há que reconhecer que, em qualquer país, têm muito de teatro. Ora, quando se trata de espetáculo é difícil bater os EUA, que, não por acaso, é a pátria de Hollywood. Também é difícil ultrapassar Donald Trump nesta dimensão da política-espetáculo.

Não há nada de mal em confessarmos que muito nos entretemos com este grande espetáculo político norte-americano. É justo reconhecer o trabalho de preparação da maioria destes candidatos que passam dias a ensaiar cuidadosamente as suas falas no palco destes debates. Até por isso os debates muitas vezes acabam por ser muito previsíveis e não ter um grande impacto na eleição. Mas podem ter, quando algo inesperado acontece que acaba por definir negativamente, perante dezenas de milhões de eleitores, a personalidade de um candidato. Até ver não me parece que tenha existido um momento desse tipo, mas teremos de continuar a assistir (caso haja mais debates) e acompanhar as sondagens e as eleições.

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O que nos importa tudo isto?

Com mais ou menos espetáculo a preocupação no resto do Mundo com quem venha a ser o próximo presidente dos EUA nada tem de disparate. Os EUA não são um país qualquer. Continuam a ser um grande motor de inovação e dinamismo na economia mundial. Continuam a ser o mais importante ou o segundo mais importante parceiro das economias europeias. Continuam a ser, de longe, a maior potência militar global, gastando sozinhos em defesa tanto quanto os 14 Estados seguintes. Continuam a ser a mais antiga e poderosa democracia liberal. Continuam a ser a principal potência do Atlântico Norte, e a ter um papel central na NATO, a aliança militar mais robusta da história, de que Portugal é membro fundador e que lhe oferece uma poderosa e preciosa garantia de segurança.

Em suma, quem será o próximo Presidente dos EUA importa muito para a segurança e a prosperidade do resto do Mundo, e em particular da Europa e também de Portugal.  Até porque ao nível da política externa, bem mais do que da política interna, o Presidente dos EUA tem um enorme poder discricionário. Infelizmente, os debates têm sido muito limitados ao nível da política externa, que esteve praticamente ausente no primeiro entre Trump e Biden, e apenas um pouco mais presentes no segundo entre Harris e Pence. Mas alguma coisa é possível concluir, para já, deles.

O balanço dos dois primeiros debates

Trump mostrou grande vitalidade, mas também grande desespero. Percebe-se perante as sondagens que teimam em ser-lhe desfavoráveis, nomeadamente na maioria dos 10 Estados que decidem as eleições presidenciais. Foi tal a sua ânsia de interromper o seu adversário, que acabou por facilitar a Biden a tarefa de escapar a temas difíceis. Tanto rebaixou Biden que as expetativas quanto à sua performance eram tão reduzidas que quase só precisou comparecer para vencer. Sobretudo, não vejo como a extrema agressividade de Trump e a sua recusa em obedecer as normas tradicionais do debate o possam ter ajudado a recuperar alguns dos eleitores indecisos, estimados em 10%, que precisa para ganhar. O moderador do primeiro debate, um respeitado jornalista conservador da Fox News, Chris Wallace, é um bom representante desse eleitorado indeciso, e não parecia estar com muita paciência para Trump.

O facto de Trump ter sido contaminado pela Covid 19 tornou difícil desviar a atenção do facto de que a sua governação tem tido grandes dificuldades em conter a pandemia. E esta é também uma responsabilidade do vice-Presidente Mike Pence, que é formalmente responsável pela Task Force pelo combate à pandemia. Até pode permitir, caso Trump escape à doença sem susto de maior, tentar jogar a cartada do líder providencial, do homem forte, que irá providenciar uma cura milagrosa aos americanos. Vimos também como nos debates Trump e Pence procuraram apresentar Biden ou Harris como não confiando que os EUA possam desenvolver uma vacina. Ora, quem não está desesperado por uma cura milagrosa que nos permita escapar a esta pesadelo da Covid-19?

Em suma, parece-me que nestes dois debates iniciais: Trump confirmou ser o pior inimigo de si próprio; Biden escapou sem gafes; Pence cumpriu o seu papel de um porta-voz articulada da direita mais conservadora; e Harris mostrou ser credível. Pence foi mais forte na política externa, em que tem tido um papel de estabilização nas relações com os aliados. Harris foi mais forte nas questões de saúde pública e no desejo de regresso a uma política interna e externa mais fiável e mais normal. Mas 26 dias são uma eternidade num contexto tão incerto. Não por acaso há no vocabulário político norte-americano a expressão October surprise, uma surpresa nas semanas finais antes da votação presidencial, fixada por lei para o início de Novembro, e que pode alterar os resultados. Foi o que aconteceu em 2016 com o chamado caso dos e-mails de Hillary Clinton.

Uns EUA mais protecionistas, mais hostis à China, mais polarizados e paralisados

Os eleitores em geral preocupam-se sobretudo por questões internas e não externas. Vimos isso nestes debates norte-americanos, em que foram poucas as questões de política externa discutidas. Podemos, apesar disso, ter duas grandes certezas quanto às prioridades externas com grande impacto nas relações com a Europa do próximo Presidente dos EUA, seja ele Trump ou Biden. A primeira é que teremos uma política económica norte-americana mais protecionista. A segunda é que a China é cada vez mais vista como uma potência hostil aos interesses norte-americanos. Estes temas tendem a ser associado a Trump. E se o atual presidente for reeleito serão tendências que se irão acentuar. Mas é um erro pensar que são caprichos ideológicos exclusivos de Trump e dos Republicanos. Estes foram dos raros temas de política externa a surgir repetidamente, e, sobretudo, foram dos raros temas em que houve algum acordo de fundo entre as duas candidaturas, mesmo que no quadro de acusações mútuas. Kamala Harris acusou Donald Trump de ter perdido a guerra comercial com a China. Mike Pence insistiu que Joe Biden se tinha recusado a apoiar Trump quando quis parar o vírus que vinha da China. Com um estilo diferente, provavelmente mais conciliatório, um Presidente Biden não deixaria de dar seguimento a estas prioridades cada vez mais consensuais na opinião pública e na elite norte-americana. Apesar das referências positivas de Pence e Harris aos aliados europeus e à NATO, estas duas tendências prometem desafios acrescidos na relação entre os EUA e a Europa.

O verdadeiro cenário de pesadelo para economia mundial e para as relações com a Europa seria uma eleição presidencial nos EUA que se arraste durante semanas, ou até meses, sem um vencedor claro e reconhecido, mergulhando um país tão central para o normal funcionamento do sistema global numa polarização extrema, na paralisia, potencialmente na violência.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do novo programa Café América na Rádio Observador. O programa vai para o ar todas as quartas feiras às 14h00 e às 22h00.