Após no Verão passado ter visitado os EUA e a China tinha pensado escrever sobre a “guerra” cultural mais do que a guerra económica que separava os EUA da China, por ocasião dos 70 anos da fundação da República Popular da China, no passado dia 1 de Outubro. No entanto, durante este tempo de pandemia tem ficado evidente para todos a natureza do regime autoritário chinês e, por isso, não posso calar o que vi e conheço do Partido Comunista Chinês (PCC). Isto, porque não é só o futuro de Portugal, da Europa ou do Ocidente que está em causa, mas também o do povo chinês e o de cada um de nós como indivíduos com os direitos e liberdades que conhecemos. Ficam aqui portanto algumas histórias que ilustram pontos bem mais sérios sobre aquilo que diverge entre os EUA e a China do PCC e que permitem reflectir sobre onde nos queremos situar. Espero que vos ajudem a perceber a urgência do período que hoje vivemos e de que o COVID-19 e as suas consequências, como se tem visto nas últimas semanas em Hong Kong, é apenas o último e mais forte sinal.

Verdade: Desde o que ocorreu em Tiananmen em 1989, no mesmo ano em que caiu o Muro de Berlim, o PCC percebeu que teria que voltar a uma linha mais dura de controlo sobre a população, sendo Xi Jinping, o mais recente “Imperador” da dinastia Mao Zedong, o culminar deste controlo. Assim sendo, as pessoas que hoje têm menos de 30 anos viveram numa constante indoutrinação por todos os meios possíveis: escola, media e redes sociais; sendo levados a uma total fidelidade ao partido, numa visão em que país, partido e indivíduo são um só, uma espécie de trindade, em que o feito ou a vergonha do partido, do país ou do indivíduo é sempre coletiva e individual. Daí a dificuldade em existir um patriotismo crítico da governação e portanto uma necessidade de um partido que “nunca se engana e raramente tem dúvidas”. E, quando se engana, rapidamente reescreve a história, como vimos nos últimos meses a passagem do PCC de vilões a heróis da pandemia. Além disso, todos sabem da existência do crédito social, a maioria achando algo positivo que irá aumentar a segurança do país, tal como as incontáveis câmaras com identificação facial, a inexistência de dinheiro físico, sendo que até para comprar uns óculos de sol, no meio do deserto, ao vendedor como o da praia, se usa as apps Alibaba ou WeChat, a super app em que dinheiro, mensagens, fotografias e pagamentos se movem, e que nas cidades mais avançadas permitem até pagar com identificação facial. E, recentemente, para garantir que todos seguem o Pensamento de Xi Jinping, os trabalhadores estatais e também os não estatais são forçados a aceder todos os dias durante um período de tempo a uma app que contém partes deste pensamento, ninguém se atrevendo sequer a pensar não o fazer.

Dado este contexto, ao entrar na Praça Tiananmen, onde o quadro do grande líder feliz repousa, as emoções são elevadas mas os pensamentos não podem contrastar mais: os europeus relembravam a luta pela liberdade e o massacre que ocorreu naquela praça, os chineses rejubilavam de contentamento por estarem no centro daquilo que é o seu país, a marca fundacional. E o diálogo ocorrido, que confrontou o que duas mentalidades diferentes pensam, rapidamente demonstrou que os jovens chineses não faziam ideia do que realmente se tinha passado naquele local, as aulas de história tinham ignorado esse massacre e ninguém falava dele. Ali, disseram-me ainda que toda a praça onde no dia 1 de Outubro seria a parada militar tinha já sido alugada pelo Partido para não haver nenhum risco de segurança, pelo que perguntei se as pessoas da República Popular Chinesa não poderiam assistir presencialmente às cerimónias da fundação do seu país. Logo me explicaram, com um sorriso como se fosse ignorante, que obviamente que não, que só as pessoas mais importantes eram convidadas e que os restantes poderiam ver na televisão como todos os anos. Em retrospetiva, penso quanta sorte tivemos em poder ver os nossos líderes políticos a celebrar o 25 de Abril no Parlamento, pela televisão.

Liberdade: Os avanços tecnológicos fazem obviamente parte de uma sociedade comunista e portanto a China tem confortáveis comboios de alta velocidade para cobrir longas distâncias. Sentado num destes comboios oiço um anúncio em mandarim, que é depois repetido em inglês, afirmando que era proibido fumar no comboio e que quem o fizesse se arriscaria a não poder comprar bilhetes da próxima vez. Parece uma boa regra de higiene e também não era difícil compreender como executariam as duras consequências dado que eles tinham o meu número de passaporte registado no bilhete que comprei e a minha imagem estava captada nas câmaras de vigilância. No entanto, perguntando o que foi dito em chinês, fui informado que a versão inglesa era um eufemismo da realidade. A versão chinesa afirmava que o crédito social do cidadão seria afetado se o comportamento não fosse ordeiro… Uma tradução feita para estrangeiro ouvir…

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Justiça: É curiosa também a atitude do próprio povo chinês e o seu diálogo com o exterior. Não falar chinês é não falar na maioria da China, apesar das pessoas tentarem muito simpaticamente interagir com os estrangeiros. Mas isto dificultava a comunicação com os locais sem ser através de nativos que pudessem traduzir, mesmo com os guias locais. Tendo estado dois dias no deserto com uma guia, esta apenas comunicava em mandarim. Para além disso, foi sempre rude com os seus únicos clientes e impaciente com as demoras para aproveitar ao máximo o tempo naquela histórica localidade na antiga rota da seda do tempo em que a China procurava apenas fazer comércio com o Ocidente; não como a moderna rota que procura estender um braço neocolonial construindo infra-estruturas em países como o Sri Lanka, a Somália ou até aproveitando as crises na Europa como na Grécia, comprando o Porto de Pireu, e em Portugal.

Chegada a altura de avaliar a guia, pensámos ser justos para a jovem guia poder melhorar, e decidimos ser verdadeiros na nossa avaliação. No entanto, este sentido de justiça e verdade não eram para ser aplicados, nem era essa a intenção da avaliação. O que descobri é que no regime do PCC, todas as avaliações de todos os serviços são excelentes, porque se se for honesto sobre a qualidade dos serviços a pessoa pode ser despedida, e ninguém dá avaliações menos que perto de perfeito, porque quando alguém nos é recomendado, ser justo em relação à prestação de serviços é algo que pode ser destrutivo para a estabilidade das relações.

Igualdade perante a Lei: Na quinta de Orwell havia uns animais que eram mais iguais que outros. Na República Portuguesa também, como se viu no 1º de Maio passado. Mas na utopia comunista tal seria inimaginável. Todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres. Exceto os membros do Partido Comunista que têm uma fila exclusiva para comprarem bilhetes de comboio. Exceto que sem cartão do PCC há um limite de ascensão em qualquer carreira. Exceto que qualquer pessoa que tenha investido em estudar numa Universidade estrangeira, muitas vezes nas melhores do mundo, vê-lhe fechada qualquer hipótese de participar nos programas de pesquisa mais avançada chinesa ou de lugares governativos porque não estudou a filosofia marxista na universidade e, principalmente, porque pode ter-se tornado um espião. Mas estas desigualdades atingem o seu auge no âmbito da vida. A China, desde os anos 70 até 2016, manteve a política do filho único de modo a controlar a sua população. Esta política limitava cada casal a ter apenas um filho, sendo que a partir de 2016 foi permitido ter dois filhos. Isto gerou atrocidades com milhões de abortos realizados anualmente e pessoas a matar filhas nascidas ou abortá-las por preferirem ter um rapaz, havendo neste momento mais 32 milhões de homens que mulheres. No entanto, quem tinha mais posses e ligações ao partido podia “comprar” mais um filho, podendo ter dois filhos ainda antes de 2016. Isto porque Orwell não se enganou e sabia que na quinta comunista os animais não são todos iguais.

Por outro lado, a experiência nos EUA é que estes celebram com unhas e dentes a sua liberdade, justiça e igualdade de direitos e que nenhum governo pode tirar, incluindo o próprio, suspeitando até bastante das elites governativas, como já notara no século XIX Alexis de Tocqueville na obra Democracia na América. No Texas, ao sairmos do local onde jantámos, fomos amigavelmente interpelados por um aniversariante, que ao saber que em Portugal não tínhamos armas, nos convidou a irmos disparar uns tiros em casa dele, tendo sido sabiamente dissuadido pelos seus amigos. No dia seguinte, na estrada, percebemos este fascínio pelo direito à posse de armas ao passarmos no monumento à Segunda Emenda, que o protege. Nesse monumento estava esta citação do fundador do EUA, George Washington: “Pessoas livres devem não só estar armadas e disciplinadas mas devem ter suficientes armas e munições para manter um estatuto de independência de qualquer um que tente abusar deles, o que pode incluir o seu governo”. Sem tomar posição sobre a legislação de armamento, não posso deixar de registar quanto são interessantes as diferentes posições sobre o papel do governo que separam o regime do PCC e o Americano e quão diferente é a reação ao abuso de poder nos EUA e na China, não obstante a condenação de revoltas violentas ou anarquistas.

Caridade: Ao aterrar em Newark, ia ter com o contingente português de escuteiros que tinha estado no Acampamento Mundial nos EUA. Foi-me buscar ao aeroporto um português emigrante em Newark. Ele tratou de ajudar a alojar mais de 300 portugueses em Newark, indo ele e a sua família buscar alguns a mais de 800km e a atravessar Nova Iorque à hora de ponta para deixar outros no aeroporto, sendo sempre incansável na ajuda aos seus compatriotas que nunca antes tinha conhecido e que provavelmente nunca voltaria a ver. Esta caridade, que nada espera, não é por demais evidente em todo o Mundo. E, muitas vezes, não é por culpa própria. Ao referir que costumava ajudar a distribuir comida pelos sem-abrigo a um colega chinês, a sua primeira reação foi contrária ao que seria de esperar. Ele pensava que ao dar-lhes comida para sobreviverem isto contribuiria para que eles ficassem na situação precária em que viviam, porque assim não teriam incentivo para procurar um trabalho e se sustentarem. Esta ideia espelhava a mentalidade materialista individualista que as pessoas se devem erguer pelos próprios meios e que serem ajudadas a levantarem-se com caridade só perpetuará a sua situação. No entanto, após distribuir comida e ouvir as histórias dos sem-abrigo, apercebeu-se que aquilo que antes pensava sem nunca se ter questionado sobre ajudar estas pessoas não correspondia à realidade e passou com frequência a realizar este ato caritativo.

Estas histórias são apenas exemplificativas e não são por si suficientes para demonstrar todas as diferenças entre os EUA e a China sob o regime do PCC. Mas chegou a hora de Portugal e principalmente a União Europeia decidirem de que lado quer estar antes de ser demasiado tarde. Não é possível continuar a viver mais numa posição que procura o melhor dos dois mundos, sem uma posição firme, nem isso é conveniente para uma Europa forte, assente em valores. No lado americano, temos um presidente que muitos não gostam e por isso criticam e troçam, mas o sistema americano, por virtude dos valores que tem, obriga o presidente a ser reeleito a cada quatro anos, sendo escrutinado e criticado diariamente, e, politicamente a cada quatro anos, não podendo estar no poder mais de dois mandatos.

Na China, o PCC manda há 70 anos, deixa para trás um rasto de dezenas de milhões de mortos embora seja verdade que retirou centenas de milhões da pobreza em 40 anos, que é agora crucial nos avanços científicos e tecnológicos e que caminha para se tornar a maior potência mundial sob o PCC e Xi Jinping, que não tencionam abandonar o poder, depois de Xi ter alterado a constituição dando-lhe um mandato para o resto da vida e reforçando os seus poderes autoritários para níveis só comparáveis com os de Mao. Para o PCC, e consequentemente na cabeça do chinês comum, o Ocidente está em guerra com a China há 150 anos, desde as guerras do ópio, pois sem inimigos de Estado não se tem a quem imputar as falhas do regime. O PCC censura a imprensa e os media (e agora também as declarações europeias), desde cedo executa lavagens cerebrais aos seus cidadãos complementadas pelo revisionismo histórico e o controlo orwelliano da população, afasta quem atente contra a ideia de que o país e o partido são um, sendo vários os indivíduos de alto perfil que desaparecem, viola os direitos humanos do povo Uigure colocando-os em campos de “reeducação”, dos praticantes de Falun Gong, fomenta práticas racistas contra Africanos, interfere e desincentiva as práticas religiosas como o Cristianismo e limita aos poucos a liberdade e regime democrático de Hong Kong, indo contra os acordos de “um país, dois sistemas”. Este é o modo como o PCC trata o seu próprio povo.

Na Europa orgulhamo-nos de termos ajudado a tornar globais os valores da verdade, liberdade, justiça, igualdade perante a lei e a caridade. Os EUA receberam estes valores de mão aberta e sendo fieis a eles adaptaram-nos à sua realidade. A pergunta que enfrentamos é simples: escolhemos os valores ou a economia? Na resposta à Covid-19 escolhemos os valores. Após a Covid-19 será o momento de decisão sobre o futuro do regime do PCC e portanto de todo o Mundo. Esta resposta vai ser decisiva para as próximas gerações de todo o mundo. Qual vai ser a nossa resposta?