Com o impasse da união política, com a ineficácia da união económica e financeira, com a impossibilidade de uma união linguística e cultural, resta à Europa regressar ao sonho de uma união, ou comunhão pela fé entre os seus povos. Uma união baseada na superação de séculos de conflito, de cisma, uma união assente num novo patamar: a reconciliação entre as diferentes formas de ser cristão. Uma Europa religada pela religião.
Não uma união que exclua, que distinga, que divida, mas uma união que crie laços, pontes e diálogo entre todos os que estão e com os diferentes que chegam de fora e que, pouco a pouco, se tornam os novos europeus. Católicos, ortodoxos, anglicanos e luteranos juntos a bem da liberdade, da paz e da fraternidade.
Sei que esta esperança na comunhão dos europeus em volta da fé pode parecer utópica, irreal ou leviana.
Após o fim da medieval res publica Christiana, após vários cismas religiosos que desafiaram a igreja de Pedro, edificada na pedra de Cristo sobre as colinas de Roma. Depois do advento da ciência e da ilustração humanista, trazidas pelos ventos de setecentos e oitocentos e que na sua linhagem continental (que não na escocesa) acarretaram o desencantamento do mundo e todos os niilismos contemporâneos, transformando mesmo a fé numa questão meramente privada, do foro íntimo de cada indivíduo. Como fazer a Europa regressar à comunhão, à reconciliação, na fé em Cristo?
É um facto que aumentam os conflitos religiosos no mundo, expandem-se muitas seitas episcopais, sobretudo nos países emergentes, acentua-se o protagonismo islâmico e o mundo ortodoxo perde dimensão, assiste-se também, infelizmente, a um recrudescimento do antissemitismo.
Mas também é verdade que se esquece frequentemente o último grande cisma do ocidente cristão e o modo como ele tem vindo a ser superado para reforçar a tradição judaico-cristã cada vez mais ameaçada nos seus valores e na sua ação pastoral e social, inclusive através de formas cada vez mais violentas, como a perseguição dos cristãos em muitos lugares do planeta.
Com efeito o diálogo religioso tem vindo a ser aprofundado, desde o Concílio Vaticano II, liderado pelo Papa João XIII e continuado sobretudo por João Paulo II, Bento XVI e agora pelas deslocações ecuménicas de Francisco a Cuba, para se encontrar com o Primaz da igreja ortodoxa, ou a Jerusalém para plantar uma árvore com os líderes religiosos da comunidade judaica.
Ontem, pudemos testemunhar com a visita do Papa Francisco à Suécia mais um desses passos no sentido do diálogo religioso e da reconciliação. “Do conflito à comunhão: juntos na esperança”, foi o lema da viagem que o Papa empreendeu assinalando a aguardada oração ecumênica na Catedral luterana de Lund. Esta cidade, aliás, foi escolhida para a viagem apostólica por ter sido ali que, em 1947, se fundou a Federação Luterana Mundial, enquanto a data – 31 de outubro – foi o dia em que, segundo a tradição, Martinho Lutero expôs as suas 95 teses na porta da Igreja de Todos os Santos no castelo de Wittenberg, em 1517.
Recorde-se que este evento inédito (a oração ecuménica comum) é fruto de 50 anos de diálogo: com os luteranos, os católicos iniciaram os colóquios com o Concílio Vaticano II; em 1999, as duas comunidades assinaram a Declaração conjunta sobre a Justificação e em 2013 aprovaram o documento “Do conflito à comunhão”, que se tornou o lema desta viagem.
Mas o que quero sublinhar é a visita e todo o simbolismo que lhe está associado, o seu significado extrínseco quando, em simultâneo, se iniciam as celebrações dos 500 anos do grande cisma que levou à reforma (assinalam-se a 31 de outubro de 2017) e à contra reforma (Concílio de Trento, 1545-1553), com a consequente divisão luterana do mundo ocidental, é uma viajem que reforça a confiança na Europa através da religião.
Será apenas um caminho, apenas mais uma via possível, dirão muitos. Mas não deixa de ser a mais importante, dirão muitos mais.
A história ensina-nos que religião tanto foi uma fonte de dissensões, martírios, como de esperança, amor pelo próximo e diálogo fraterno.
André Malraux disse que o século XXI seria o século da religião. Na sua diversidade de povos, nações, etnias, culturas, será possível divisar na Europa a mesma fé, as mesmas crenças, uma mesma religião. Todos diferentes, todos europeus. Todos juntos em Cristo.
Em Itália, Núrsia, mais um sismo de grande intensidade acaba de destruir a Basílica de São Bento, padroeiro da Europa desde 1964. Saibamos, pois, dar as mãos e passar definitivamente do conflito à comunhão. Ajudar na reconstrução de Núrsia, ajudar na reconciliação entre os europeus, serão vias para, apesar das crises e das dificuldades de relacionamento entre o norte e o sul, o leste e o oeste, assumirmos que temos na Europa uma fé comum com valores partilhados, afinal, somos a mesma humanidade.
PS: Hoje, na tradição cristã, é Dia de todos os Santos, dia de finados, dia de lembrar os que partiram de entre os que ficam para assegurar os que hão de vir. Por isso, permitam-me que lembre aqui um amigo, uma voz a que ninguém ficava indiferente, Jaime Fernandes. Uma voz de equilíbrio, de paz e entreajuda, alguém de uma humanidade exemplar. Um homem digno e bom. Usando as palavras de outro grande homem vulto cimeiro da nossa ciência, literatura e humanismo, João Lobo Antunes que, infelizmente, também nos deixou nestes últimos dias, todos temos razões para chorar e “quando choramos por alguém que nos é querido, choramos sobretudo por nós.” Pelo carácter, pelo trabalho notável e pelo exemplo humano e cívico, em ambos podemos acalentar a esperança de uma Europa reconciliada e em comunhão.
Professor universitário