As eleições europeias foram mais caóticas do que um verdadeiro cataclismo. Como a Europa o é historicamente, mas não como a União Europeia gostava que fossemos. Sob o efeito de uma crise que se arrasta e impede de contentar toda a gente com o crescimento económico, saltam para cima da mesa contrastes violentos e diferenças profundas, mas sem crise a abstenção maciça não seria muito menor nem o voto no “centrão” europeu muito maior. Em eleições legislativas, os partidos de governo melhorarão quase automaticamente.

Seja o nacionalismo genuíno ou um pretexto útil para ganhar votos, os “soberanismos” de direita e de esquerda fizeram razia em muitos países, mas não em todos. Mais: apesar da austeridade generalizada, nem todos os partidos no governo perderam as eleições, fossem de direita (Alemanha, Espanha) ou alegadamente de esquerda (Itália). Mesmo a novidade da Frente Nacional francesa não é inédita: o pai de Marine Le Pen já disputara a presidência da República contra Chirac em 2002.

O défice democrático não é pois de agora. A primeira vez que escrevi a este respeito foi em 1998 mas, então, a troca da perda de soberania pelo crescimento económico e a protecção social dourava a pílula. Agora não. Era portanto previsível e, se o crescimento retomasse e o consenso se fizesse de novo ao centro, a demagogia atenuar-se-ia. O que talvez não se atenuasse era a abstenção, pois o sentimento do défice democrático tem toda a razão de ser, como acontece na grande maioria dos pequenos países, sobretudo os mais pobres.

Por detrás de um ciclo político há, muitas vezes, um ciclo económico. Neste caso, o que aconteceu é que a União Europeia julgou, durante bastante tempo, ser capaz de incarnar o “lado bom” do capitalismo enquanto os Estados Unidos e a Inglaterra incarnavam o “lado mau”. Não contou que a crise partisse de Wall Street em 2007 para unir os emergentes, sobretudo a China, atrás do liberalismo anglo-saxónico de modo a subir a parada da globalização económica contra “fortaleza europeia” e o seu “estado social”. Com os BRICs e os países que os acompanham a garantir, praticamente, todo o crescimento económico mundial da última década, os elos mais fracos da Europa envelhecida começaram a ranger e, nalguns países do “euro”, ameaçaram quebrar.

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No Reino Unido, os anti-europeístas aproveitaram a oportunidade eleitoral de “referendar a Europa”, como lhe haviam falsamente prometido Tony Blair e Cameron, e perto de um terço votou pela saída, coisa que era perfeitamente calculável e por isso é que a questão nunca fora posta a votos. Na Grécia, os eleitores colocaram os “esquerdistas” em primeiro lugar e a extrema-direita em terceiro (36% ao todo). Nos países do antigo império soviético, sem tradição eleitoral nem vivência da Europa ocidental, a abstenção foi maciça.

Ora bem, em Portugal, a abstenção foi também, como já é habitual, a mais alta a seguir à dos europeus de Leste, o que diz algo sobre as nossas tradições políticas e vivências culturais. E só não diz mais porque a percentagem de abstencionistas (mais 7,5% de votos brancos e nulos; mais 9% de votos dispersos por candidatos inelegíveis) está inflacionada pela falta de actualização dos cadernos eleitorais devida, por seu turno, aos interesses clientelares das autarquias e dos partidos dominantes… Mas não se diga que uma abstenção destas, replicada ao nível autárquico, legislativo e presidencial, não exprime de forma relevante a crise da representação partidária em Portugal. Exprime sim; não é só fastio nem distância dos periféricos.

Quanto aos resultados, a primeira evidência, aliás espelhada nos rostos da liderança socialista na noite de domingo passado, é que o PS perdeu a oportunidade que apregoava de dar o golpe de misericórdia na coligação governamental. Não deu, longe disso. Terá sido enganado por uma comunicação social desnecessariamente alarmista. Com efeito, a segunda evidência é que a aliança eleitoral dos partidos do governo ficou a escassos três pontos percentuais do dito PS, demonstrando assim que, para muitos eleitores, o governo mais não fez do que tentar cumprir o acordo assinado pela maioria socialista com os credores do país a fim de fazer frente à iminente bancarrota do Estado. Pode-se ir mesmo mais longe e pensar que esta minoria significativa considera que a situação do país é hoje menos má do que há três anos quando Sócrates foi afastado da governação.

Deixemos para a próxima o comentário que merece a lamentável irrupção da demagogia no panorama eleitoral, que já piscou o olho ao PS, como este gostaria de ter feito ao CDS mas a coligação não permitiu esse tacticismo. Dos resultados de domingo, só se pode concluir que o “centrão” continua de pedra e cal, mas é de crer que nenhum dos seus dois membros ganhará a maioria nas legislativas de 2015. Entrámos, portanto, na busca de um consenso possível para o próximo governo. A menos que o eleitorado castigue aqueles que maiores obstáculos ponham a esse consenso e opte por dar a maioria aos outros. Vai ser um ano sem descanso.