O feminismo e eu tivemos uma relação acidentada. Desde que tenho idade para me definir nesta coisas (também conhecida como adolescência) que me afirmei feminista. Lembro-me até da reação de um amigo quando soube que eu me dizia essa coisa estranha: ‘mas és tão feminina!’ desabafou com espanto. Que me espantou a mim, porque nunca associei o feminismo a ausência de feminilidade, falta de depilação ou inimizade pelo cabeleireiro ou pela maquilhagem; menos ainda com antagonismo para com a metade masculina da população.
Feminismo para mim era a defesa de direitos iguais e oportunidades iguais para homens e mulheres – bem como a constatação de que este objetivo estava longe de cumprido. E ainda é, e por isso continuo feminista.
Tudo se ensombrou vai para uns dez anos. Algumas partes do discurso feminista causavam-me alergia. Se respeito a posição de uma mulher poder decidir sobre o seu corpo, e se vejo que a discussão sobre o início da vida está longe de fechada e nem toda a gente tem de aceitar a visão de que existe uma pessoa a partir do momento da conceção, há excessos intragáveis.
Lembro-me de Lídia Jorge num dos debates para o referendo do aborto falando do feto como ‘coisa humana’. A glorificação do aborto de uma alma desmiolada, nos Estados Unidos, que resolveu filmar o seu aborto e disponibilizá-lo online para celebrar a alegria de abortar. Ou a campanha nos Estados Unidos contra o uso de analgésicos para o feto nos abortos tardios (para nem falar destes abortos tardios), feitos quando o feto provavelmente já sente dor. Ou – por cá – a recente iníqua equiparação legal e hospitalar entre grávidas que querem manter a gravidez e as que querem abortar.
Por outro lado, era-me (e é) intolerável o silêncio da maioria das feministas perante o desrespeito pelos direitos humanos das mulheres nos países muçulmanos. E mais ainda face aos maus tratos que as mulheres muçulmanas residentes na Europa sofrem dentro das suas comunidades.
A reconciliação veio com o mestrado. Nos meus estudos do trauma e das literaturas de trauma percebi como foram fulcrais as feministas, a partir dos anos 70 e 80 do século passado, na denúncia e na exposição dos abusos sexuais de menores (sobretudo ocorridos em contexto familiar). A repugnância com que hoje – e muito bem – encaramos os abusos sexuais de crianças veio da coragem das feministas que rasgaram famílias disfuncionais e véus de silêncio para escancarar a ignorância cúmplice com que a comunidade tratava estes casos. (A Igreja católica – que tem ataques de nervos quando ouve a palavra feminismo – devia ser humilde e reconhecer que neste campo tem muito a aprender com as feministas.)
E, claro, persistem as injustiças que cabem à parte feminina da humanidade. Mutilação genital, casamentos forçados e na infância, violações como arma de guerra, pobreza feminina, mortalidade materna e um demasiado grande etc. Mesmo no mais igualitário ocidente se mantêm as desigualdades salariais após descontar todos os efeitos da maternidade nas carreiras, a sub-representação política e no espaço mediático, a reserva das lideranças empresariais para o masculino, o silenciamento dos contributos femininos para a ciência e para as artes (porque os pares masculinos se recusam a reconhecer a existência ou a qualidade destas presumidas que insistem em sair da cozinha), a violência sexual, a violência doméstica e outro demasiado grande etc. Decidi, portanto, que já podia parar com o meu amuo com o feminismo.
Mas não tenho a vida fácil. Há quem se especialize no feminismo das ninharias e obscureça as guerras que importam. Quando se acha um crime uma mulher ouvir um assobio, não violento ou ameaçador, de um desconhecido na rua, eu tenho problemas. E quando começam a constranger as escolhas de brinquedos dos filhos dos outros, tentando tornar inaceitável a divisão de brinquedos natural para a maioria das crianças, salta-me a tampa.
Dizem a seguir os iluminados que a maioria das meninas escolhe bonecas e os meninos bolas e carros porque estão condicionados pelas construções de género dos seus pais. Também é verdade, sim. Temos de as eliminar. Sugiro desde já que se proíba o contacto de grávidas com crianças em idade influenciável, para que os petizes não percebam que há diferenças biológicas que condicionam os géneros. E é banir de imediato a amamentação, que é outra diferença biológica intolerável. Há que livrar as mulheres do jugo da gravidez e libertar as crianças da visão destes maus exemplos patriarcais.
A distopia da indiferenciação dos sexos já vai tão longe que algumas marcas deram em oferecer roupa supostamente unissexo. Que são apenas roupas masculinas e com cores masculinas feita em tamanhos para mulheres. A indiferenciação dos géneros consiste sempre nisto: propor às mulheres que se tornem iguais aos homens. No caso, que vistam de forma enfadonha como os homens.
Tudo ao contrário. Quando as feministas deviam protestar que os contributos no feminino, incluindo os de saia justa e saltos altos, são tão válidos quanto os no masculino e exigir que tenham igual visibilidade e poder de decisão – afinal as mulheres também são contribuintes, consumidoras e eleitoras – insistem em garantirem-se indistintas dos homens – e deitar por terra a necessidade de estarem representadas, afinal não trazem nada de novo.
E, no fim, há as verdadeiramente alucinadas. As que criticam outras mulheres por irem para os Óscares com vestidos de princesas e sereias porque, pelos vistos, estas silhuetas não são feministas. (E as mulheres agora têm de se vestir para fazer statements feministas em vez de para se gostarem de ver ao espelho e nas fotografias.) Ou que elogiam marcas de luxo por promoverem o desprezo das mulheres pelos olhares masculinos. E que consideram a moda antítese do feminismo.
Pois bem, o meu feminismo dita que as mulheres devem vestir como lhes apetecer e, se quiserem ser desejáveis para os homens (como os homens, num mundo perfeito, também têm obrigação de ser para as mulheres), as feministas moralistas que engulam o sapo. Se lhes for difícil, que corram a comprar mais uma sweatshirt disforme unissexo de cor desmaiada como terapia.