Esta sexta-feira começa a Festa do Avante, o festival/comício do PCP cuja realização tem sido massivamente criticada nas últimas semanas. Ainda bem que o PCP resistiu ao massacre mediático, social e político que procurou impedir que o evento tivesse lugar. Aliás, os comunistas sempre tiveram razão neste dossier: não vigorando o estado de emergência (como em Maio aquando do erro da manifestação da CGTP), sendo um evento ao ar livre e sendo possível assegurar o cumprimento das orientações de segurança sanitária graças ao espaço amplo, não há justificação para impedir a sua realização. De resto, o mesmo está actualmente a acontecer com as Feiras do Livro, que estão abertas no respeito das regras de segurança sanitária. E isto, claro, sem falar das praias, onde a aglomeração de pessoas foi uma constante em Agosto. Houve e há riscos? Claro que sim e com graus variáveis. Mas, infelizmente, o risco pertence agora ao nosso quotidiano e não se pode manter a ilusão de que fecharmo-nos em casa é solução — na verdade, esse é cada vez mais um grande problema.
A pergunta que se segue é óbvia: se pode haver Festa do Avante com 16 mil participantes em simultâneo, por que razão não se podem realizar festivais de Verão, por que razão se perseguem os grupos de jovens que se juntam para confraternizar na rua, por que razão se mantêm os estádios de futebol vazios? A incoerência é gritante e só se pode compreender que gere estupefacção e indignação. Mas essa incoerência é a mesma que restringe fortemente as aglomerações na rua (10 ou 20 pessoas), e depois autoriza celebrações, como casamentos, com várias dezenas de convidados. Ou ainda a incoerência de impedir as actividades desportivas dos mais novos, ao mesmo tempo que estes regressarão à escola sob orientações (a meu ver correctas e alinhadas com as opções internacionais) de distanciamento social de um metro “quando possível”. Ou seja, estas incoerências são próprias da DGS e do governo, incapazes de manter critérios uniformes, consistentes e compreensíveis — a não ser o constante privilégio das elites — e que demoraram uma eternidade para divulgar as suas orientações para um evento desta dimensão (deixando o PCP levar com o ónus da irresponsabilidade). Quem fica mal na fotografia é a DGS, não é o PCP.
O evento em si é só a ponta do icebergue. Se há algo que tanta discussão sobre a Festa do Avante demonstrou é que a sociedade portuguesa se está a quebrar em dois, na linha da clivagem que separa quem resolve cada incerteza fechando-se em casa à espera que a pandemia passe e quem deseja retomar a vida activa, mesmo que com as incontornáveis limitações. Esta clivagem não resulta apenas da submissão ao medo (que é natural). Ela reflecte profundas desigualdades sociais e económicas entre quem pode ficar em casa (sem perder rendimentos ou deteriorar a sua qualidade de vida) e quem, ficando em casa, arrisca o desmoronamento da sua vida. Mais: reflecte também a fragilidade do nosso amor pela liberdade, quando a sociedade civil se submete a atitudes persecutórias e pidescas de controlo social e bufaria. Sim, o medo é justificado — enfrentamos uma doença poderosa que conhecemos mal e que, tão contagiosa, representa inquestionavelmente uma ameaça à saúde pública. Mas o medo, sendo justificado, tem de ser encarado. Em nome da nossa saúde (além Covid-19) e da preservação do tecido económico e social — sobre isto, leiam-se os consistentes artigos de Henrique Raposo e Luís Aguiar-Conraria.
Sobre o evento, ninguém será ingénuo ao ponto de acreditar que o PCP insistiu na realização da Festa do Avante só por convicções ideológicas ou para dar o exemplo na forma de lidar com a pandemia. Como é sabido, trata-se de um evento de grande importância financeira para o partido, que aliás só é legalmente viável graças ao estatuto duvidoso deste festival enquanto evento político (com a respectiva isenção no pagamento de impostos). Mas, em bom rigor, as motivações do PCP não são para aqui chamadas, nem de resto o são as suas contradições políticas ou a sua ideologia pouco recomendável. O que importa é isto: o evento será marcante nestes meses de pandemia e definirá um precedente na gestão das regras sanitárias em eventos públicos.
Por isso, em vésperas de Festa do Avante, há que deixar um reconhecimento ao PCP que, contra todos, assegurou que o evento se manteria. E, em consonância, largar dois lamentos. Triste o país que, em plena pandemia, tem razões para desconfiar dos critérios das autoridades públicas de saúde, pelas suas orientações erráticas e incoerentes. E triste o país que precisa dos comunistas para ser lembrado de quão importante é defender as suas liberdades e recusar que os desafios presentes se ultrapassem quebrando elos sociais e económicos.