O arranque do próximo ano lectivo com aulas presenciais, em Setembro, deveria ser uma festa à volta do papel imprescindível da escola – para a aprendizagem, para o desenvolvimento pessoal dos miúdos, para a promoção da igualdade de oportunidades, para o combate às desigualdades sociais, para o carácter insubstituível dos professores, para a construção de um futuro melhor para milhares de crianças que, sem escola, ficariam entregues à sua sorte. No entanto, tudo aponta para que a reabertura das escolas seja, sobretudo, um campo de batalha.

Da parte dos directores de agrupamentos escolares, são muitas as dúvidas e as resistências às orientações oficiais (DGS e ministério da Educação) para a reabertura das escolas – e, sim, as suas questões são legítimas e devem ter resposta. Mas, para além de questões pertinentes, emerge um alarmismo retórico contraproducente, que apenas agita pais, professores e alunos – por exemplo, quando se sugere que se estará a brincar com a saúde das crianças. Da parte dos representantes dos professores, a Fenprof inaugurou ameaças, ultrapassando todos os limites e preparando-se para responsabilizar o ministério pela eventual morte de docentes (a indignidade das declarações de Mário Nogueira já foi exposta pelo Luís Aguiar-Conraria e pelo Miguel Pinheiro, pelo que me escuso de comentar).

O que está por detrás da ansiedade e das críticas são precisamente as orientações da DGS, das quais directores e sindicatos desconfiam. Isto porque, para o distanciamento social entre alunos, se aponta para 1 metro, se possível – o que, na prática, não será possível em muitas circunstâncias, visto que os espaços escolares não são elásticos. Ou seja, em vários momentos do dia escolar, o distanciamento social não será praticado. E isto choca tanto com as orientações para outros sectores de actividade, como colide com a experiência escolar recente, quando os alunos do secundário voltaram às aulas presenciais em condições mais restritivas. Por isso, as dúvidas são naturais, sobretudo quando se constata, como o faz Filinto Lima, que parece existir regras sanitárias para as escolas que diferem das regras sanitárias para a sociedade em geral. E isto sem lembrar que, após orientações sanitárias que viraram anedota, a credibilidade da DGS já conheceu melhores dias.

Parece-me evidente que existe inépcia comunicacional de ministério da Educação e DGS, incapazes de tranquilizar a comunidade escolar e explicar categoricamente o que justifica que as orientações para as escolas sejam mais flexíveis do que noutros sectores. Mas isso, por si só, não significa que as orientações sejam desadequadas. Pelo contrário, tanto quanto se sabe, as orientações da DGS estão ajustadas às evidências disponíveis e alinhadas com as medidas adoptadas em vários países europeus. E essa mensagem, tão essencial para um regresso às aulas sereno, não está a passar.

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Há três aspectos que me parecem determinantes para o enquadramento destas orientações sanitárias, que merecem maior destaque na apresentação do plano de reabertura das escolas.

Primeiro, as orientações da DGS estão alinhadas com as evidências empíricas. Os estudos já realizados mostram que as crianças estão menos sujeitas a contágio ou a complicações de saúde causadas pela Covid-19 – e, também, que até aos 10 ou 12 anos aparentam ser muito pouco transmissoras. Sendo certo que há estudos que apontam para que, a partir dessa idade, o potencial de transmissão aumente para próximo do de um adulto, a obrigatoriedade de uso de máscara a partir do 2.º ciclo limitará fortemente os riscos. Pode soar a pouco, mas nas escolas e em muitas áreas de actividade já se verificou que o uso de máscara (acompanhado de medidas de higienização) é uma via eficaz para prevenir contágios.

Segundo, as reaberturas até ao momento (entre Abril e Junho) sugerem que as escolas são espaços com segurança acima da média – isto é, espaços muito frequentados que não aparecem associados a focos de contágio. A reabertura das escolas, em Portugal (secundário) e em muitos outros países europeus (no básico), não gerou um descontrolo da pandemia. Isto é também válido para o pré-escolar, onde o distanciamento social é uma impossibilidade prática. Mais: não há, no mundo inteiro, registo de professores infectados pelos seus alunos, mostrando que a protecção dos docentes é naturalmente tida em conta. Sabendo-se que as reaberturas aconteceram em grande escala e em diversos contextos e países, estes são dados relevantes, significativos e encorajadores.

Terceiro, as orientações da DGS em Portugal são muito similares às de vários países europeus para as suas reaberturas escolares, sendo transversal a menor exigência no distanciamento social. Como desenvolvi neste ensaio acerca da preparação do próximo ano lectivo em vários países, a redução do distanciamento social será o elemento-chave da reabertura das escolas por toda a Europa. E é muito fácil encontrar paralelos com as opções portuguesas. Por exemplo, em França, a distância entre alunos será de 1 metro e, quando não possível, o uso de máscara será obrigatório. Noutro exemplo, na Bélgica, os alunos com menos de 12 anos terão prioridade absoluta no ensino presencial, que deverão frequentar diariamente mesmo nos piores cenários pandémicos.

Assim, numa frase, as orientações da DGS para as escolas são mais ligeiras do que para outros sectores, sim, mas essa diferença é perfeitamente justificável com as evidências extraídas em contextos escolares, além de tornar a reabertura das escolas e o ensino presencial possíveis. Haverá sempre riscos – e ignorá-los ou pretender anulá-los será, em ambos os casos, cair em ilusões. Mas, tanto quanto sabemos, avaliados os riscos, a reabertura das escolas compensa. O que se espera é que os principais agentes representativos do sistema educativo o percebam e deixem de fazer das orientações da DGS uma trincheira que semeia alarmismos na comunidade. Se o arranque do próximo ano lectivo for um campo de batalha, todos perderemos – a começar pelos alunos.

PS: Acho que, nesta fase, já não vale a pena insistir na importância da reabertura das escolas. Mas porque adivinho que em breve regressem em força os apelos ao ensino à distância, volto um pouco atrás. Desde Março, escrevi várias vezes sobre o dano causado pelo prolongado encerramento das escolas (por exemplo, aqui e aqui), assim como foram escritos muitos outros artigos que recomendo vivamente sobre o tema (destaque para vários de Luís Aguiar-Conraria, por exemplo este, mas também de João Miguel Tavares, Susana Peralta, Fernando Alexandre ou Pedro Oliveira, somente para mencionar alguns). Já não se trata de um debate, mas de matéria de facto: o encerramento das escolas amplia desigualdades sociais e de aprendizagem, sendo brutalmente nocivo para os horizontes e vida futura de milhares de crianças. E a única forma de enfrentar com isto com realismo é abrir as escolas, no respeito das orientações da DGS.