As palavras de José Brito, com os seus atos, a sua bravura e coerência, alegram a alma num tempo em que o mundo parece ter entrado por ruas desconhecidas e becos sem saída. Um tempo de paralisias e anacronismos, em que demasiadas vezes ficamos passivamente a assistir aos acontecimentos, optando por filmar em vez de agir. Um mundo em que facilmente nos fazemos indiferentes e menores.

José Brito salvou um homem de morrer afogado no rio Tejo. O antigo pescador cabo-verdiano, que veio para Portugal devido a problemas graves de saúde e precisou de um transplante de medula, trabalha hoje em dia com pessoas sem-abrigo. As pessoas que estavam com ele à beira-rio viram a mesma cena que ele, mas apenas José Brito deu o passo em frente. Ou melhor, o salto para a água. Um mergulho consciente da urgência que era precisa para salvar aquela vida.

Contou, depois, que enquanto se despia – ele, que há pouco tempo entrou vestido e calçado na água para resgatar o skate de um rapazinho que chorava por tê-lo deixado cair ao rio! – ainda ouviu várias vozes a tentar dissuadi-lo. Não salte, chamem os bombeiros, liguem para o INEM, é preciso ajuda! O coro de vozes agitadas era expressivo, mas não o impediu de saltar. Talvez tenha servido para aliviar a consciência aflita dos curiosos que se preparavam para assistir ao afogamento eminente, não sabemos.

– Atirei-me por conta própria, quando as pessoas à minha volta diziam para chamar a polícia. Vi que alguma coisa errada se estava a passar e não pensei duas vezes. Sabia que aquele senhor não ia sobreviver.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

José Brito fala do homem que salvou tratando-o sempre por “senhor”, com educação e respeito por alguém cujas circunstâncias desconhece, mas que provavelmente se atirou ao rio em desespero, por não saber o que haveria de fazer consigo próprio.

Tudo em José Brito impressiona, para dizer a verdade. O ato heróico, a rapidez com que percebeu que precisava de agir, o imediatismo com que se desembaraçou da roupa e mergulhou numa água turva e cheia de lodo, mas também a pressa com que virou o senhor para cima e o carregou para fora de água, colocando-o em posição lateral para libertar o excesso de água e, logo de seguida, o reanimou.

Vi os vídeos que se tornaram virais e ouvi as palavras de José Brito, de mão dada com um dos seus cinco filhos, precisamente o que assistiu ao salvamento. Falou com tranquilidade e sem aspiração a ser o protagonista do dia. À pergunta se se considerava um herói, respondeu simplesmente que voltaria a fazer o mesmo, porque não conseguiria viver com o peso na consciência de não ter agido a tempo de salvar uma vida. Sobre o senhor mais velho disse palavras sinceras:

– Espero bem que sobreviva.

José Brito foi exemplar, disse o PR no elogio público que lhe fez. Foi, de facto.

António Doce também, mas as coisas não correram como deviam ter corrido. Se tivesse sobrevivido ao brutal atropelamento, o agente da PSP diria provavelmente palavras semelhantes às de José Brito: “Fiz o que tinha que ser feito”.

A história também todos a conhecemos. Neste mesmo fim de semana, António Doce, agente da PSP, perdeu a vida porque arriscou salvar a vida de uma mulher que estava a ser maltratada na rua, em pleno dia, pelo homem tresloucado, malvado e castigador que a acompanhava. Um guarda prisional, por sinal.

Os filhos de António Doce perderam o pai de forma dramática. Tal como os filhos de José Brito, também eles viverão para sempre com a certeza moral de serem filhos de um pai-herói. Infelizmente, a família Doce foi castigada pelo ato assassino de um grande cobarde. Atrevo-me a usar uma palavra que todos evitamos, mas se aplica ao sobredito guarda prisional: um facínora. Um selvagem que violenta primeiro a mulher que tem ao lado e, depois, atropela conscientemente o homem que veio em seu auxílio.

Choca o contraste entre os que agem fazendo o que tinha que ser feito e os outros, que maltratam ou dão um passo atrás para que nada lhes aconteça.

Todos sabemos histórias de heróis comuns, gente que acorda de manhã sem saber que não cairá a noite sem terem salvo vidas. Conheço algumas destas pessoas e jamais esquecerei uma delas, aparentemente a mais anónima e banal entre todas. Uma mulher magra e de baixa estatura que, ao atravessar a ponte sobre o Tejo, viu um jovem rapaz pronto a atirar-se ao rio.

Esta mulher parou o carro e alcançou o rapaz no último instante, mesmo correndo o risco de ser ela própria atropelada. Ainda hoje reconhece que não sabe como conseguiu parar no meio do fluxo constante de trânsito nos tabuleiros da ponte e, mais, como conseguiu travar o rapaz no seu impulso de se atirar ao rio. Na verdade, o rapaz era jovem e corpulento e a gravidade é uma força arrasadora, extraordinariamente difícil de contrariar.

Salvou-o a muito custo, literalmente a pulso, e muitas vezes se pergunta como pode isso ter acontecido, sendo ela tão frágil e ele tão forte e em plena beira de precipício. Não terem caído os dois da ponte foi um acontecimento prodigioso, mas é um facto. Também esta mulher fez o que tinha que ser feito.

Perante estas e outras histórias, estes e outros exemplos, é impossível não pararmos para refletir. Seríamos nós capazes de fazer o que tinha que ser feito? Seríamos capazes de nos atirarmos à água ou juntaríamos a nossa voz ao coro aflito? Seríamos capazes de nos atravessarmos na rua, em dia de folga e descanso, como fez o agente António Doce?

Não sei. Se calhar nunca saberemos, mas estes atos heróicos têm que nos fazer refletir e têm, obrigatoriamente, que interpelar quem nos governa e quem é pago para nos proteger. E nisto concordo com o José Manuel Fernandes, quando comentou, aliás quando sublinhou, que raramente estes exemplos vêm de cima e de onde deveriam vir.

Vemos, ouvimos e lemos vezes de mais exatamente o contrário: gente que foge às responsabilidades ou desaparece de cena; líderes viciados em atribuir as culpas a terceiros; políticos e dirigentes que promovem a mentira, fingindo que as coisas não são como são; responsáveis que sorriem e acenam com leveza perante a desgraça alheia; autoridades que mascaram realidades. Enfim, gente que não é exemplo para ninguém e dificilmente dará passos para fazer o que realmente tem que ser feito.