Basta sermos mães e pais com filhos ainda a viver em casa, ou avós de netos menores, para corrermos o risco de os ver cada dia mais abatidos, alguns com sinais exteriores de desânimo ou, pior, já com sintomas alarmantes de depressão. Muitos jovens passam atualmente por crises de ansiedade, situações de pânico e momentos em que sentem que ficam como que bloqueados, mas ninguém está preparado para lidar com esta nova realidade. Nem em casa, nem nas escolas, onde não existem estruturas de apoio, nem profissionais suficientes com formação específica para acolher, sinalizar e encaminhar tantos novos casos.

A crise sanitária mundial impôs um distanciamento social que perturbou o equilíbrio interno de todas as gerações, mas está a afetar particularmente os mais novos. A pandemia e respetivas restrições agravaram a saúde mental de quase metade da humanidade e é absolutamente prioritário agir porque há demasiadas crianças e jovens silenciosamente desesperados, a auto mutilarem-se e inclinados a desistir de viver. As tentativas de suicídio infantil e juvenil dispararam e as medidas de proteção são urgentes e imperativas.

Em França, perante uma realidade igualmente gritante e tão avassaladora como a nossa, o próprio presidente da república decidiu atravessar-se pelas gerações mais novas e anunciou a criação de um ‘cheque-psi’ para apoiar as famílias e os jovens que se sentem psicologicamente mais afetados pela pandemia. No dia 14 de Abril, Emmanuel Macron foi a Reims, onde está a ser construído um novo e sofisticado Centro Hospitalar Universitário, e falou demoradamente com especialistas da unidade de pedopsiquiatria. Perdeu tempo a tentar perceber a extensão do fenómeno e, no fim, declarou que vai ser criado um ‘cheque-psi’ para que ninguém deixe de ter apoio psicológico ou psiquiátrico.

Em Portugal, incontáveis rapazes e raparigas de todas as idades passam demasiado tempo fechados nos quartos, emboscados atrás de computadores ou suspensos dos telemóveis, muitas vezes em silêncio durante horas a fio, absortos e desconectados do mundo, a reagir apenas aos impulsos constantes das mensagens que entram pelas redes sociais. Tornaram-se ainda mais ecrã-dependentes do que já eram antes da pandemia, e muitos passaram a viver desligados da realidade de casa, completamente alheios às vivências familiares, distantes dos amigos reais e a viver vidas de ficção.

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Algumas destas crianças e jovens pertencem a famílias carenciadas e moram em casas pequenas, húmidas, sombrias e sem as condições mínimas. Casas onde passaram a coabitar todos os elementos do agregado familiar ao mesmo tempo, 24h por dia, transformando o espaço em palco de permanente agressividade e grandes desavenças. Mas há muitos outros casos de jovens e crianças deprimidos que não são vítimas de maus tratos e até moram em casas luminosas, solares e espaçosas. Ou seja, a Covid-19 transtornou meio mundo, independentemente das origens sociais e níveis de educação.

Crianças com menos de 10 anos recusam-se a sair do quarto, não querem tomar banho e, se as deixassem, ficariam de pijama todo o dia, durante semanas inteiras. Os níveis de irritabilidade e intolerância aumentaram em todas as casas e é rara a família sem queixas de tristeza, abatimento, cansaço e algum desequilíbrio que facilmente se converte em rastilho para desentendimentos e zangas que podem envolver violência e excessos.

A ligação à net passou a ser vital para todos os que estudam e trabalham, mas também para quem sente necessidade de se alhear, de se distanciar de realidades que prefere ignorar. Nas gerações mais novas esta ligação permanente à internet chega a ser obcecante e muitos jovens respondem preferencialmente às tribos a que se ligam. Muito mais do que aos irmãos, pais, familiares e amigos reais. A ligação a certos grupos que existem na net faz-se de muitas maneiras, seja através de movimentos de fãs de bandas rock, seguindo os influencers do momento, prestando atenção às condutas dos grandes ídolos nacionais e internacionais ou, numa versão mais perversa e ainda mais armadilhada, estabelecendo laços com organizações daninhas que os dividem para sempre e lhes exigem condutas inadequadas.

Muitos jovens psicológica e emocionalmente afetados pela pandemia entraram em processos de desligamento em relação à vida, às relações e às pessoas com quem vivem, de quem dependem e de quem sempre gostaram. Passaram a viver em patamares ficcionais e a responder a amigos e tribos que exigem deles respostas e atitudes diametralmente opostas àquelas que naturalmente seriam as suas. Estes rapazes e raparigas passaram a estar ligados a uma realidade ficcional que não tem ligações à realidade real e, silenciosamente, foram cavando fossos, verdadeiros abismos de distância entre si e os pais, os irmãos, os amigos, os professores e até os treinadores de modalidades que antes os entusiasmavam e passaram a deixá-los indiferentes ou arrogantemente desdenhosos.

Estes miúdos que se ligam a pessoas e grupos com quem nunca estiveram presencialmente, mas a quem respondem e tentam imitar, adotando outras personalidades e atitudes, são os que maior preocupação provocam. Muitos rapazes e raparigas passaram a jogar jogos perigosos na net e não são apenas os de cariz sexual ou que entram na esfera da sua intimidade. Alguns destes jogos psicológicos exigem que assumam identidades que não são as suas e se comportem do dia a dia imitando quem os influencia, tentando agradar aos seus novos ‘amigos’. Na net existe de tudo, como sabemos, e entre as tribos que se multiplicaram durante a pandemia há algumas mais ‘confrontacionais’, que exigem aos seguidores esse confronto em casa contra os pais, contra a educação que receberam, contra os valores com que cresceram, contra tudo e todos os seus influenciadores naturais.

Tudo se passa muitas vezes no silêncio, pela noite dentro, em ligações com pessoas de todo o mundo, em latitudes e fusos horários que permitem uma ligação permanente. Em nome da tolerância para com esta e mais aquela causa, cresce uma enorme intolerância e muitos destes jovens ficam divididos entre quem sempre foram e quem passaram a ser. Os pais e os psis que conhecem e acompanham estes casos falam de conflitos brutais (internos e externos) decorrentes desta mesma divisão.

Sophia de Mello Breyner dizia, no seu tempo, que as novas gerações sabiam mais do que percebiam. Se já era verdade há umas décadas atrás, esta realidade tornou-se ainda mais gritante quando temos notícia de rapariguinhas de 12, 13 e 14 anos que aceitam fazer role plays na net em que fingem que foram molestadas sexualmente e agem e falam em conformidade para que outros as ouçam e leiam, dando ‘entrevistas’ e tomando como certas experiências pelas quais não passaram.

Há casos em que estas mesmas raparigas, e também muitos rapazes, são levados a decidir que querem morrer porque não vale a pena existir no mundo atual, tal como está, e, nesta lógica, são encorajados a levar a sua decisão até às últimas consequências. Ou, ainda, casos em que os jovens se comprometem perante a tribo a fazer guerra diária aos pais, ignorando acintosa e provocatoriamente o que estes lhes dizem. Tudo isto e muito mais acontece neste mundo virtual. São as novas ‘praxes’ para quem quer ser aceite em grupos que têm agendas próprias, quase sempre disfarçadas de grandes causas humanas. Estes grupos seduzem preferencialmente jovens ingénuos, sensíveis e porventura impreparados ou mais isolados. Jovens que realmente sabem mais do que percebem e não se dão conta de que estão a cair em redes perversas. Que são muitas e cada vez mais.

Só para termos uma ideia do que é viver diariamente uma ficção, muitas destas rapariguinhas que fazem role plays fingem ser, em cada dia, uma das figuras da vida dos artistas que idolatram. Aceitam tacita e explicitamente agir como se fossem a namorada de um dos ídolos da sua banda, para dar apenas um exemplo, e criam relações de amizade em que assumem o nome dessa pessoa. Assumem o que ela é e encarnam a personagem integrando o que julgam ser os processos interiores de cada uma das diferentes personagens que assumem. Soa a loucura? É loucura, sim, mas acontece com mais frequência do que imaginamos. E provoca uma gravíssima cisão interior, um rasgão na personalidade que leva ao desligamento crescente da realidade e à destruição dos laços familiares e de grupo.

Muitos pais sabem do que falo e já tiveram grandes sustos quando leram escritos dos filhos, quando os apanharam em conversas estranhas com gente estranha, a horas muito estranhas, quando testemunharam situações inéditas em que não reconhecem os seus próprios filhos ou, em situações mais dramáticas, quando os levaram de urgência ao hospital depois de uma tentativa de suicídio.

É importante estar vigilante e identificar os sinais de alerta, mas também é fundamental saber a quem recorrer. E ter meios para o fazer. Porque todas as crianças e jovens que se fecham e isolam, que passam a ter ideias negras e perturbações do comportamento, dão sinais de que não estão bem, seria extraordinário imitar Emmanuel Macron e criar medidas tão imediatas e eficazes como um ‘cheque-psi’, entre outras.