1807. 27 de Novembro. Uma força militar de aproximadamente 1.500 homens dirige-se da Golegã para Lisboa. Lutam contra o tempo que lhes escasseia, contra os péssimos caminhos, contra a falta de abastecimento, contra o tempo inclemente que faz. Estes homens são as tropas de Napoleão. Comandadas por Junot têm como objectivo chegar o mais rapidamente possível a Lisboa para aí capturarem a família real portuguesa. Na barra do Tejo, 8 naus, 3 fragatas, 3 brigues e 3 escunas aguardam por ventos favoráveis. A família real e boa parte da corte, melhor ou pior acomodados nessas embarcações, esperam pelo momento em que o vice-almirante Manuel da Cunha Souto Maior, comandante da esquadra, dê ordem de partida. Mas o momento tarda.
Junot está em Portugal desde 19 de Novembro de 1807. Veio de Salamanca onde recebeu instruções para apressar a marcha sobre Lisboa. O Vale do Tejo é a sua rota até Lisboa. Nos mapas esta era a opção mais curta e mais segura do ponto de vista do invasor pois nessas terras agrestes nem fortes militares existiam.
Mas a realidade era outra: não existiam vias de comunicação nem nada que se lhe assemelhasse; os céus pareciam abrir-se adensando ainda mais a incerteza de quem se deslocava em terra desconhecida; nas localidades que atravessavam não conseguiam obter provisões… Saqueiam, matam, profanam, violam. Mas mal algum soldado francês fica isolado logo se torna o alvo da vingança dos residentes que os atiram das fragas ou matam logo ali.
A 26 de Novembro os homens de Junot entram em Abrantes. Perderam peças de artilharia pelo caminho. Caminham sem ordem.
A 27 de Novembro chegam à Golegã. Na barra do Tejo, a esquadra que vai levar a família real e boa parte da corte para o Brasil sabe que pouco falta para que os franceses cheguem a Lisboa. Aguardam por vento favorável.
Chega o dia 28 de Novembro. Na barra do Tejo o vento sopra de sul. Não se pode partir. Os homens de Junot já estão no Cartaxo. Estão exaustos. Esfomeados. Mas Lisboa é logo ali.
Chega o dia 29. O vento sopra de nordeste. A esquadra larga da barra do Tejo. Uma frota inglesa vai escoltá-la até ao Brasil. Há também navios mercantes.
As tropas de Junot já estão em Sacavém. Aos franceses são enviadas garantias de que não encontrariam resistência na sua marcha sobre Lisboa, cumprindo-se desta forma o determinado pelo príncipe regente Dom João que a 26 de Novembro fizera a seguinte proclamação: “Vejo que pelo interior do meu reino marcham tropas do imperador dos franceses e rei da Itália, a quem eu me havia unido no continente, na persuasão de não ser mais inquietado (…) e querendo evitar as funestas consequências que se podem seguir de uma defesa, que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade, (…) tenho resolvido, em benefício dos mesmos meus vassalos, passar com a rainha minha senhora e mãe, e com toda a real família, para os estados da América, e estabelecer-me na Cidade do Rio de Janeiro até à paz geral.”
A 30 de Novembro de 1807 os franceses entram em Lisboa. Nesse momento nada têm a ver com a imagem grandiosa dos exércitos de Napoleão, são sobretudo um grupo de tropa quase toda apeada, com fardas rotas, alguns estão descalços, outros têm armas desconjuntadas.
Pior, todo o esforço que fizeram foi em parte em vão: lá longe, no Tejo, vêem-se ainda as linhas de alguns dos barcos que tinham largado na véspera. É o chamado ficar a ver navios.
A primeira invasão francesa chegara a Lisboa sem enfrentar outra resistência além dos ataques levados a cabo pelos camponeses do vale do Tejo mas a “paz geral” desejada pelo príncipe Dom João essa não duraria mais que quinze dias: o povo de Lisboa veio para a rua a 13 de Dezembro de 1807, quando o general Junot deu ordens para que a bandeira portuguesa até aí hasteada no Castelo de São Jorge fosse substituída pela bandeira francesa.
Daí em diante, as revoltas sucedem-se. Os saques, as prisões e os fuzilamentos de portugueses também. É o tempo em que Henri-Louis Loison, o Maneta, que viera com Junot gritava “já fuzilée!” E os portugueses viam como ia “tudo pró maneta!” pois Loison é encarregue por Junot de punir essa massa de camponeses, cidadãos anónimos, estudantes, padres, quase invariavelmente reaccionários, e alguns notáveis que se revoltavam contra a presença dos franceses. Régua, Beja e Évora são alvo do que hoje designamos como massacres.
O resto é sabido: em Setembro de 1808, menos de um ano depois de ter entrado em Lisboa, Junot parte “com armas e bagagens”, ou seja com o produto do saque. Para trás deixa um país semi-destruído e ainda mais pobre. Um país em que ele, Junot, encontrara uma resistência popular que não estava à espera e se confrontara directamente no terreno com as consequências da aliança entre os interesses de uma potência estrangeira, a Inglaterra, e essa resistência de um povo que ora esganava franceses ora cantava:
Que generais é que devem
morrer ao som da trombeta?
Os três meninos da ordem:
Jinot, Laborde e Maneta.
Podia continuar a desfiar razões para fundamentar a necessidade de assinalarmos os 215 anos da primeira invasão francesa. A primeira é que tudo parece um eco daquilo que a Ucrânia está a viver: lá estão os massacres, a resistência popular sempre depreciada pelas acusações de reaccionarismo, a necessidade de salvaguardar a face do agressor derrotado…
Mas na verdade não é por isso. Ou não é apenas por isso que resolvi fazer esta viagem no tempo. O que me impeliu decisivamente a tal é a fantochada em que estão transformadas as comemorações do 25 de Abril. O que até agora tivemos foi apenas o regime a celebrar-se a si mesmo. Custa-me assistir a isso. Outras coisas não me custam, repugnam-me, como é o caso da atribuição da Ordem da Liberdade a Rosa Coutinho. Personagens desse calibre prefiro-as com alguns séculos em cima. Por isso, neste ano de 2022, penso dedicar-me à primeira invasão francesa também por uma questão de higiene. Que é como quem diz, vou ler o que puder sobre o “Jinot” e o Maneta para desse modo poupar-me a ver Rosa Coutinho ser agraciado com a Ordem da Liberdade…
Esta crónica regressa no dia 24 de Abril.