1. Parafraseando o meu bom amigo José Manel Fernandes, está uma pessoa um breve tempo fora — ele na quentura africana, eu na “segunda pátria de toda a gente” que como bem sabemos é a Itália –, chega a Lisboa e nisto não sabe onde está. Não reconhece a paisagem, estranha os seus habitantes, perde o pé e depois perde a cabeça: que tabuada política era aquela no final da semana passada?

Mesmo sabendo a velocidade estonteante a que a política pode mudar, volatilizando o que estava e desfazendo a realidade em bocados para a transformar noutra, o caso de que me ocupo com vergonha e a contragosto, irá certamente passar a figurar nos compêndios de Ciência Política. Os Mestres agradecerão, de resto: não é vulgar encontrar um exemplo onde de uma assentada estejam inscritos todos os erros políticos que a política recomenda que não estejam.

2. À hora a que escrevo ainda nada se sabe do desfecho mas para o caso é quase irrelevante: o mal está feito e há de haver quem não lhes perdoe. Mesmo que se venham a alegar nuances, a invocar más interpretações do que fizeram, disseram ou propuseram o CDS e o PSD, a elevar o tom de voz ou a desenterrar argumentos e razões, etc., a primeira impressão foi tão negativamente forte que tão cedo não se dilui. E mesmo que haja marcha atrás, julgo que também não: na minha fatídica chegada a Lisboa intuí de resto que tudo acabaria com uma envergonhada marcha atrás disfarçada de um “patois” meio político, meio jurídico mas sucede que igualmente intuo que isso, dada a dimensão da “aliança” que se gerou na AR há dias, seja também quase irrelevante. Os estragos são pesados e não sou eu que o digo serão os votos, a mais clara, límpida e irrefutável radiografia do erro. Do erro e desta humilhação – não há outro substantivo — que os representantes partidários do centro-direita e da direita infligiram aos respectivos eleitorados.

Mesmo dando de barato quanto pode ser penosa a solidão da oposição, o passado recente destas duas agremiações já não fora glorioso na sua errática navegação e nas suas tão perplexantes mudanças de rumo. Sucede que nada disso é apesar de tudo comparável com, insisto, a humilhação agora causada a esse mesmo (cansado) “povo”. E para quem considere que me empolgo há uma foto aqui publicada pelo Observador, que me perdoa este galope e me redime do que o leitor possa distraidamente tomar por “chover no molhado”: uma imagem assassina onde se vê um grupo de mulheres e homens em ansiosamente atenta mas muito amável confraternização, numa aliança mal vinda e mal vista (CDS/PSD/PCP/BE) da qual resultou fazer de António Costa o mais responsável dos patriotas e talvez venha a resultar fazer do país uma pátria mais endividada.

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Chover no molhado? Insisto: não.

3. Nunca saberemos até ao fundo o que vai na cabeça das pessoas nem como se organiza a sua forma mentis, mas mesmo assim: como ler o que se passou e a quem ou a quê atribuir este duplo suicídio de dois partidos com idade para ter juízo e saber de política? Que pensava para si mesmo e que ia dizendo aos seus improváveis companheiros de foto cada um dos deputados daquele friso, unidos em súbita e espúria aliança? Que visavam alcançar e em que consequências político-partidárias apostavam eles? Não sei. Que pode ter ocorrido de tão forte que tivesse atirado Ana Rita Bessa e Margarida Mano (nunca vi nem uma nem outra, mas sei que são tidas em boa conta) para uma espécie de auto-armadilha, e que ocorreu de tão poderoso que lhes tivesse subitamente vetado a lucidez e a fidelidade a uma pertença ideológica? Ou melhor, a responsabilidade dessa pertença e o compromisso que uma e outro pressupõem e exigem? Também não sei e tenho pena.

É que esta fúnebre trapalhada – para além de muitíssimo embaraçante para quem se reclame de direita — é ainda mais inexplicável politicamente por coincidir no tempo com a primeira grande aflição política de António Costa. Jorge Sampaio costumava dizer – no que era de imediato festiva e estrepitosamente aclamado pelas esquerdas — que “há mais vida além do deficit”. Pois há. E calha que a que há, corria mal ao primeiro-ministro. Basta passar os olhos mesmo que de relance pelo que era o mapa governamental, eleitoral e político de António Costa há quatro ou cinco dias, para alcançar o voo do que eram as suas aflições: um inviável cabeça de lista às eleições europeias já em empate técnico com Paulo Rangel, o candidato do PSD e em risco de poder ser por ele ultrapassado; três ferventes leis a entrar no Parlamento, tão ferventes que acenderiam de imediato as relações já indisfarçavelmente algo crispadas do PS de Costa (há outro PS do qual António Costa não gosta) com o BE; uma polca mal dançada com Belém — ambos os dançantes são intensos o que não facilita a polca — por causa da Lei de Bases da Saúde; promessas feitas e não cumpridas, avanços e recuos na saga dos professores por parte do governo socialista. As eleições a aproximarem-se, o temor de um vexame eleitoral, a temível odisseia dos incêndios à porta, a preguiça para o tom de voz sempre reclamante do BE… era enfim muito peso para um homem só: célere na sua intuição, dotado para vestir muitas peles — todas as que forem precisas – rápido a perceber e ainda mais rápido a intervir, António Costa saltou. Eu também saltaria: com tão generosa rede estendida pelos adversários nem sequer corria o risco de me estatelar. Claro que o afã foi tão excitado e o tom da encenação tão dramático que a desconfiança de imediato se instalou: Costa estava assim tão aflito? Se calhar estava.

4. Já há quem cante o hino da maioria absoluta, mas convém lembrar a esses apressados que tal como a guerra de Tróia ela nunca terá lugar (está nos astros). Digamos, isso sim, que Costa está mais confortado. Tem razão. E que pessoas como eu, por exemplo, estão menos. É a vida, como dizia aquele engenheiro nosso conhecido. Mas que há-de haver pessoas que não lhes perdoam, isso, há-de. Até Outubro António Costa tem o guião pronto, o centro e a direita acabaram de o escrever diante de todos nós: de um segundo para o outro, graças a uma irresponsabilidade ainda turva, Costa passou a ser “o” responsável, “o” patriota, “o” político moderado, o governante atento que preza as contas em dia, respeita os compromissos. Isso. E tudo isto de borla.

Coisas assim tão ruins, não se perdoam. Pior, não se esquecem.