De repente, até a imprensa espanhola deu por que a península não acaba em Badajoz e que para além da raia há um curioso país governado por parcerias de pais e filhos, e de maridos e mulheres, como uma empresa familiar. É de facto extraordinário. Mas o primeiro-ministro, muito descansado, matou logo a questão: “não era novidade”. Porquê? Porque já era notícia conhecida? Ou porque, em Portugal, sempre teria sido assim, mas só agora a imprensa, por má vontade contra o governo, estaria a desvendar os parentescos dos políticos? Ora, se foi neste segundo sentido que António Costa disse que não havia novidade, é preciso dizer que sim, que há novidade.
Nos séculos XIX e XX, mesmo sob regimes supostamente representativos e apesar de revoluções frequentes, a base de recrutamento político manteve-se bastante restrita em Portugal, não só pela dimensão do país, mas por a instrução da população ser reduzida. Se a isso adicionarmos o nepotismo, não é surpreendente que os mesmos nomes de família tendessem a repetir-se na vida pública, tal como acontecia em muitas profissões. Na segunda metade do século XIX, cerca de metade dos deputados tinham alguma relação de parentesco com outro deputado. Houve sempre muitos primos e irmãos na política. Os irmãos Passos, Manuel e José, os líderes da esquerda nos anos 1830, são um exemplo. Os filhos sucederam por vezes aos pais. Carlos Lobo de Ávila, ministro na década de 1890, era filho de Joaquim Tomás Lobo de Ávila, ministro na década de 1860. Dizia-se até que o velho Lobo de Ávila preparara o filho, desde pequenino, para uma carreira parlamentar, obrigando o miúdo em casa a fazer discursos que ele ia interrompendo com apartes e protestos, para o jovem Carlos se habituar a falar no meio do tumulto das assembleias. É fácil reconstruir linhagens e redes de políticos aparentados, em alguns casos através de regimes que entre si se contradiziam na ideologia e no funcionamento.
Mas sendo as coisas assim, há a registar este facto que agora parecerá espantoso: num país com uma população ainda mais pequena do que a de hoje e muito menos escolarizada, não tenho notícia de irmãos ou filhos e pais terem sido ministros ao mesmo tempo durante a Monarquia Constitucional, a Primeira República ou o Estado Novo. Pode-me estar a escapar algum caso, mas penso que não. Quanto à actual democracia, creio que só uma vez, antes da época actual, dois ministros foram parentes muito próximos: Ricardo Baião Horta e Basílio Horta em 1981. Podia ter acontecido outra vez em 1990, mas Miguel Beleza tomou posse como ministro das Finanças no dia em que a sua irmã Leonor Beleza deixou de ser ministra da Saúde.
Isto dá ideia do carácter excepcional do grau de endogamia da actual governação socialista. Porque é que numa democracia e num país com uma população maior e mais qualificada do que no passado, e onde portanto a base de recrutamento político é mais vasta, acontece esta coincidência de pais e filhos, maridos e mulheres estarem sentados no mesmo conselho de ministros? Nunca, provavelmente, o número de relações familiares num governo terá sido tão grande, e os números, como notou Vital Moreira, contam. Desculpe, Dr. António Costa, mas é de facto “novidade”, e não podemos procurar a sua razão de ser nas tradições de neopotismo da sociedade portuguesa, porque essas tradições nunca antes geraram tal acumulação de parentes próximos num governo.
Não devemos por isso diluir e confundir os actuais parentescos governativos no meio de outros casos de ligações familiares. Se esta endogamia tem algum significado, não é a de um resquício do passado ou de uma ocorrência normal, mas, pelo contrário, a de um fenómeno novo e único, que sugere o encerramento de um regime, incapaz de se renovar, e o esgotamento político de um grupo que domina o país há vinte anos, e que já só parece encontrar confiança dentro dos círculos familiares mais próximos. Sim, há aqui novidade – e talvez sinal do fim de uma época.