Foi em 2013, há quase dez anos, que uma activista do grupo feminista radical Femen simulou, na igreja da Madeleine, em França, o aborto de Jesus, exibindo no seu corpo uma frase provocatória: ‘Natal cancelado’. A feminista em questão apresentou-se despida da cintura para cima, com um pequeno véu azul claro, simulando ser a mãe de Cristo, tal como é tradicionalmente representada. De braços estendidos em forma de cruz, segurava nas mãos dois pedaços de fígado de boi, que pretendiam representar o feto abortado, que no caso seria o próprio Jesus de Nazaré.

A protagonista deste desacato foi condenada, pela justiça francesa, a um mês de prisão e a uma multa de dois mil euros, mas agora, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) não só a ilibou de qualquer culpa, como condenou a França ao pagamento de uma indemnização de dez mil euros à activista, por violação da sua liberdade de expressão!

Segundo o TEDH, o acto profundamente provocatório da feminista, agravado pela circunstância de ocorrer num espaço sagrado, como é uma igreja católica, não é condenável, porque teria “contribuído para o debate público sobre os direitos das mulheres, mais especificamente sobre o direito ao aborto”.

Esta sentença levanta a questão do exercício da liberdade de expressão, nomeadamente quando o seu exercício interfere com a liberdade religiosa dos crentes. Foi a título de indemnização, por não ter sido respeitada, pelo Estado francês, a liberdade de expressão da feminista que o TEDH condenou a França ao pagamento de uma generosa indemnização de dez mil euros, cinco vezes o valor da multa a que tinha sido condenada pela justiça francesa.

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Gregor Puppink, presidente do Centro Europeu para a Lei e a Justiça, criticou o descarado enviesamento ideológico do TEDH em questões relacionadas com a liberdade religiosa. Para este efeito, recordou que o mesmo Tribunal condenou, em 2018, um cidadão austríaco, por ter afirmado que a relação sexual de Maomé com Aisha, de nove anos, é um caso de pedofilia, pois entendeu que essa afirmação significava uma “generalização sem qualquer base factual” e, “provavelmente”, despertaria uma “indignação justificável” entre os muçulmanos.

Comparando esta decisão do TEDH com a sentença que ilibou a activista francesa, Gregor Puppink comentou: “Como não ver um duplo padrão aliado a uma cegueira culpável? O conferencista austríaco só falou a verdade, com decência e discrição, enquanto o objetivo do Femen era ferir e ofender. O TEDH nunca teria apoiado uma exibição tão macabra se tivesse ocorrido em uma mesquita, ou em um tribunal”.

A desigualdade dos critérios seguidos pelo TEDH evidencia alguma animosidade em relação à Igreja católica, muito própria do laicismo dominante, bem como algum favorecimento do islamismo, talvez porque os muçulmanos são parte não desprezável dos eleitorados de muitos países europeus.

Este caso suscita a questão sobre as relações entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, nomeadamente em relação à blasfémia, tida por inaceitável em termos religiosos, mas que os defensores de uma total liberdade de expressão consideram um legítimo exercício da sua liberdade, sobretudo numa sociedade laica, como é a europeia. É óbvio que este aparente conflito só pode ser resolvido na base das proclamações dos direitos fundamentais, porque uma cedência às lógicas religiosas suporia um regresso às sociedades confessionais, como são os regimes oficialmente islâmicos, que adoptaram o Corão como lei fundamental, criminalizando qualquer afirmação que contrarie a religião muçulmana. No Paquistão, por exemplo, a lei da blasfémia deu cobertura legal à perseguição a Asia Bibi e a outros cristãos.

Na sociedade ocidental, há quem entenda que a blasfémia é um legítimo exercício da liberdade de expressão, mas, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, é “um dito considerado ofensivo, ultrajante em relação à divindade ou à religião”, ou um “dito ou comportamento gravemente ofensivo para com uma pessoa ou coisa digna de muito respeito” (vol I, pág. 540). Note-se que se refere sempre, expressamente, o seu carácter gravemente ofensivo. Não o diz um texto confessional, mas sim o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.

Devem poder discutir-se, em liberdade, todos os temas religiosos. Em nenhuma legislação se devem punir as livres opiniões de crentes e não crentes. Não deve haver qualquer censura à liberdade de expressão. Daí não decorre, no entanto, nenhum direito à agressão religiosa, mas sim, pelo contrário, um dever de respeito por todas as pessoas e pelas suas convicções, religiosas ou não, salvo se contrárias à liberdade dos outros cidadãos. Não pode haver lugar para os inimigos dos direitos humanos.

Se a blasfémia é uma ofensa, é pertinente que se lhe dê um tratamento jurídico análogo à injúria e à difamação. Todas as individualidades físicas e morais podem, num estado de direito, exigir que a sua dignidade seja respeitada publicamente. Se uma pessoa, ou entidade, merece essa consideração, também um crente e a sua religião devem gozar de semelhante protecção legal. Quando a dignidade de indivíduos e instituições, religiosas ou não, é posta em causa, a sua defesa não é uma questão do foro confessional, mas uma exigência ética e jurídica.

Quando, há já alguns anos, o estilista inglês John Galliano insultou, em Paris, num lugar público, um casal judeu, não consta que alguém tenha saído em defesa do agressor, ou da sua liberdade de expressão. Se tivesse troçado de Jesus Cristo e de Maria de Nazaré, os dois únicos judeus que podem ser impunemente insultados em público, ninguém, por certo, se teria atrevido a acusá-lo de antissemitismo. E, se calhar, não teria faltado quem tivesse elogiado a sua irreverência … em nome da liberdade de expressão!

Há alguns anos, os responsáveis pela publicação Charlie Hebdo, cuja irreverência religiosa era ofensiva para muçulmanos e cristãos, foram barbaramente assassinados em Paris por terroristas islâmicos. Não há nenhuma justificação para este crime hediondo, que também não pode ser instrumentalizado para legitimar a blasfémia, cujo carácter ofensivo é eticamente censurável. Não se vence a violência com violência de sentido contrário: estão a mais todas as formas gratuitas de agressão, sem excluir as verbais.

Os crentes devem aceitar a não-crença dos ateus e agnósticos e a sua legítima expressão, mas os não-crentes devem também respeitar os que têm fé. O crime, qualquer que ele seja, não admite nenhuma legitimação. A blasfémia também não. Só na aceitação de todas as pessoas e das suas circunstâncias se pode construir uma sociedade livre e solidária.