Em Junho, no Público, João Miguel Tavares contava que há vários anos que «chatei[a] jornalistas e directores com este desafio: façam um levantamento exaustivo do tipo de escolas – privadas ou públicas – onde andam os filhos dos ministros e dos secretários de Estado, e uma investigação minuciosa aos hospitais – privados ou públicos – que eles frequentam.» Talvez não valha a pena o esforço. Já numa entrevista dada à Visão em 2016 pela então secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, à época em cruzada contra os contratos de associação, o jornalista reconhecia que há perguntas que não se fazem: «Não lhe vou perguntar se elas [as filhas da então secretária de Estado da Educação] estudam numa escola pública…» Mas Alexandra Leitão fez questão de sossegar os espíritos mais incautos e corajosamente deixou exposta a sua coerência: «Mas eu respondo: por acaso não estudam (risos). As minhas filhas fizeram o jardim-de-infância e a primária numa escola pública. E agora estão na Escola Alemã. E faço questão de explicar porquê. A opção pela Escola Alemã tem a ver com a opção por um currículo internacional. Para mim era importante que elas tivessem uma educação com duas línguas que funcionem quase como maternas, digamos assim. Se assim não fosse, andariam obviamente numa escola pública.»
A pergunta seguinte podia parecer evidente: por que razão, então, uma família com menos rendimentos, se entender que é importante para os seus filhos uma educação com duas línguas, fica excluída desse direito por motivos exclusivamente económicos? Mas não: de seguida Alexandra Leitão foi convidada a contar aos portugueses quem são as suas referências políticas, hipótese dourada para mais uma dose de lero-lero cantado como que a um boi que lê, não tendo a trabalheira de explicar contradições porque, que diabo!, a entrevistada era, afinal, uma defensora da escola pública.
Sucede, por isso, que quem se insurgia contra o fim dos contratos de associação era, por natureza, um destruidor da escola pública. Era o meu caso. E para esta discussão pouco importava que a governante tivesse os filhos num colégio privado e eu nunca tenha passado um único ano lectivo fora da rede estatal e que por lá tenha também as minhas filhas. A opção por determinadas políticas públicas tem por cá apenas um critério de apreciação. Não é o dos resultados, Deus nos livre de tal coisa, mas apenas o da bondade.
No Verão passado, numa das nossas últimas incursões familiares ao centro de saúde, para agendamento de vacinação das crianças (porque os e-mails estavam por responder há vários meses e os telefonemas nunca foram atendidos), quisemos saber se tínhamos médico de família (não temos) e o que devíamos fazer caso pretendêssemos marcar uma consulta médica. A resposta foi clara: é vir para aqui cedinho, de madrugada, ter a sorte de apanhar senha, arriscar um dia inteiro à espera da consulta, ou ir a correr para a urgência de um hospital. Como a funcionária foi directa, contratei pela primeira vez na vida um seguro de saúde na semana seguinte. Sucede que, no universo fantástico de quem pastoreia Portugal há 7 anos, esta história só pode ser falsa; e eu, como está bom de ver, contratei um seguro de saúde porque vivo em conluio com o capital e serei, quiçá, um suburbano com aspirações a fascista.
É possível que me venha a acontecer coisa semelhante quando me entrar pelo quotidiano o drama da falta de professores, das disciplinas coxas porque não há professor ou porque o professor está de baixa e a escola não o pode substituir. E, se resistir à rede privada de ensino (para evitar conspurcar, com a presença das minhas filhas, os colégios onde andam os filhos de quem defende a escola pública), lá terei de suportar as deficiências do Estado, que eu financio, através do pagamento de explicações particulares.
É, enfim, uma lista longa que descreve um país que se habitou ao abandalhamento de um Estado que funciona quase sempre mal, a um país sempre ultrapassado, onde a clique instalada se passeia com o ventre inchado e os outros vão andando, bem obrigado, entre a resignação, o conforto que a mediania oferece e um certo conformismo com a certeza de que tudo assim é e assim será, num país de 10 milhões que tem 4 milhões de pobres e que se encara só com fatalismo e sem um ligeiro sobressalto.
Por razões mais ou menos fáceis de explicar, os portugueses decidiram oferecer uma maioria absoluta a este estado de coisas, em que uns comem, outros pagam e a generalidade encolhe os ombros e se baba por uma caridade que nem um poucochinho de repugnância gera. Por mais estranho que possa parecer a quem ambiciona viver num país diferente, e temo que não sejamos muitos, o país vive pacificamente, como um burro que come na manjedoura, com esta realidade política que aprecia narrativas, boas intenções, resultados miseráveis e mãos estendidas à esmola a quem a possam oferecer. Não importam as avaliações e os resultados, a exigência, o rigor, a ambição. Nada. Sobrevive apenas uma cultura de miséria moral, servilismo e subserviência a quem manda, e uma mãozinha à procura de umas migalhas. Na entrevista que António Costa deu à Visão na passada semana, é evidente que o Primeiro-ministro falou para três frentes: para os jornalistas, a quem vendeu, creio que com sucesso, as narrativas dos alegados sucessos governativos; para a oposição à direita, a quem mostrou a soberba de quem manda e sabe que manda; e aos portugueses, a quem largou o anúncio de mais 240 moedas atiradas aos mais pobres – sem que ninguém conteste como, ao fim de tantos anos de mesmice, temos ainda um milhão de famílias a quem 240 euros fazem tanta falta. Costa sabe melhor do que ninguém que tem pela frente um país anestesiado, talvez até mesmo bêbedo de amor pela sua mediocridade. Naquela fotografia de capa, ufano no seu grosseirismo, não estava, afinal, o chefe do Governo. Estava um país habituado.