As identidades não existem como essências fixas. Elas dependem de memórias, e a memória é o resultado de uma narrativa em que se dá, ao mesmo tempo, presença e ausência, retenção e esquecimento. Para dizer quem sou tenho de me narrar. Tenho de dizer de onde venho, por onde passei, com quem estive e vivi. Tenho de falar de amigos e família, dos espaços que habitei, do que quis e logrei ser, dos caminhos que percorri; em suma, das experiências que me fizeram eu. Vendo-me como uma sucessão de acontecimentos passando diante de mim, aponto para o seu encadeamento e dou-lhe unidade e sentido. Chamo «eu» a essa unidade e «identidade» ao sentido. Por isso, sei, ao fazê-lo, que tanto o «eu» quanto a «identidade» são uma construção, o contar de uma história onde se jogam luzes mas também sombras. Não me conheço tal como sou, disse Kant, mas tal como me apareço.

As sombras ocorrem também nas identidades nacionais. Também para as nações a identidade é produzida por um percurso histórico sinuoso e errante onde memória e esquecimento se entrelaçam. Tal como nos indivíduos, também elas sentem por vezes, em virtude das circunstâncias, a tentação de deixarem para trás o que foram, ganhando novo sentido e contando sobre si outra narrativa. Como sempre, tal emerge amiúde em períodos de crise. Porém, ao contrário do que acontece com as personalidades individuais, em que os recomeços podem ser manifestações de consciência e liberdade, a reinvenção de identidades nacionais é sempre um processo violento. Foi o que aconteceu em Portugal, após os treze anos da Guerra do Ultramar e o golpe de Estado que, em 1974, lhe pôs fim.

Gorado o sonho de defender o Império e construir nele uma grande nação pluricontinental, a transição democrática impôs a formação de uma nova identidade portuguesa. Para os portugueses do que fora a «metrópole», forjou-se uma narrativa que, vertida no insólito preâmbulo da nova Constituição, imaginava uma «longa resistência do povo português» e evocava os seus anseios de libertação «da ditadura, da opressão e do colonialismo». Para os portugueses do Ultramar, por seu lado, criou-se uma história em que movimentos guerrilheiros armados pela União Soviética, frequentemente com exígua implantação no território e até, por vezes, desconhecidos das populações, eram alçados a legítimos representantes de um povo unido em revolta contra a opressão colonial. A ambos seria necessário inculcar uma visão simples e clara das coisas, sem complexidades nem dimensão trágica. Nesta, tudo se teria de resumir à revolta dos «condenados da terra» contra o mal onde nebulosamente se amalgamavam racismo, colonialismo, autoritarismo, fascismo, capitalismo e demais epítetos da mesma índole. Era a história cultivada pelos generosos militantes que então despontavam nas altas esferas da cultura – e que, mais tarde, iriam ocupar partidos e televisões, cátedras e jornais – e se imaginavam destinados a emancipar os povos, inaugurando uma «era pós-colonial» de justiça, igualdade, prosperidade e paz.

Acontecia, porém, que tais militantes procuravam amiúde libertar os povos malgré eux. Sob a sua influência, e fascinados com o novo mundo europeu que a Revolução abrira aos destinos de Portugal, os novos legisladores em Lisboa, com entusiasmo e voluntarismo juvenil, trataram de se livrar rapidamente das amarras africanas e implantar, por decreto, a história que legitimava o fim apressado do Império. Na visão do mundo cristalina que se deveria instalar no novo Portugal democrático, reduzido à sua dimensão europeia, haveria ou exploradores ou explorados; ou brancos opressores ou negros oprimidos. Por isso, em contraste com as políticas de integração anteriores promovidas por um Estado Novo já moribundo, a novíssima democracia portuguesa abordava o problema ultramarino com um critério fundamentalmente racista: a África era para os negros (e a Europa, supunha-se, para os brancos). Portanto, não haveria lugar para os muitos africanos que, fosse qual fosse a cor da pele, queriam continuar portugueses. Muito menos haveria para os milhares de combatentes de origem africana que, como cidadãos portugueses, tinham servido as forças armadas na sua luta de defesa diante das guerrilhas independentistas.

Era preciso um golpe de misericórdia. Este foi dado a 24 de junho de 1975, pela mão de Almeida Santos, quando a recém-nascida democracia portuguesa se apressou a despojar da nacionalidade portuguesa, por decreto, todos estes homens. No caso da Guiné, Portugal manchava-se também com o sangue de inúmeros combatentes que acabaram fuzilados, muitas vezes com as suas famílias, pelas novas autoridades. Cúmplices morais destes assassínios, os novos dirigentes do novo Portugal democrático procuraram, durante décadas, cobrir a vergonha com silêncio e esquecimento. E uma nova narrativa sobre a identidade nacional portuguesa, na sua história recente, foi forjada para consolidar a sua boa consciência. Para a geração a que pertenço, nascida na década de 70, foi a história costumeira, mil vezes repetida, de que o 25 de abril fora a «revolução dos cravos», uma grande festa cívica, bela e florida, em que ninguém morreu (a não ser os últimos mártires da «longa resistência» vítimas da PIDE) e sem qualquer responsabilidade pelo que se seguiu.

Passado hoje quase meio século de tais acontecimentos, a proposta de devolução da cidadania portuguesa aos antigos combatentes da Guiné, apresentada como petição à Assembleia da República, não é, por isso, apenas uma reparação. Não se trata de confessar e pedir desculpas às vítimas, como hoje uma mentalidade puritana, que se tornou quase omnipresente, tornou habitual exigir. Trata-se certamente de corrigir uma injustiça, nos poucos casos em que tal é possível. Mas trata-se também, para os portugueses da minha geração, nascidos pouco antes ou pouco depois destes acontecimentos, de interrogarmos as narrativas que nos ensinaram a reproduzir e de, ao fazê-lo, nos reencontrarmos connosco mesmos de forma mais autêntica. É apenas isso que torna esta petição – em si mesma absolutamente justa e sensata – algo que ameaça tornar-se politicamente incómodo. As identidades, é certo, serão sempre o cruzamento de memória e esquecimento. Mas há memórias que, por mais que envergonhem, incomodem e desafiem a imagem que nos habituámos fazer de nós mesmos, não podem nem devem ficar esquecidas.

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