Durante a polémica no boxe feminino das Olimpíadas, uma chalaça apareceu na internet. Um evidente cavalheiro, com barba, peruca e laçarote na cabeça, voltava-se com maus modos para outro sujeito: “Sim, identifico-me como mulher. Porquê, você é biólogo?” A resposta deste: “Sim, identifico-me como biólogo.” Entre parêntesis, não há um biólogo digno do título que ache a “identificação” suficiente para um marmanjo se afirmar mulher. Mas o ponto da chalaça não é esse. O ponto é que o processo de alucinação em curso permite certos delírios enquanto interdita outros. De acordo com o regulamento tácito – e extremamente vago – em vigor, é aceitável e louvável que alguém se declare do sexo oposto, e é ridículo e punível que, por exemplo, alguém declare possuir uma formação que não possui ou pertencer a uma etnia a que não pertence.

Em 2014, Rachel Dolezal era a presidente da delegação do NAACP (uma associação de defesa dos negros) em Spokane, Washington. Em 2015, viu-se corrida sob enxovalho. Pelo meio, a denúncia dos pais dela revelou que, ao contrário do que fingia em público, e não sei se em privado, a dona Rachel não tinha pingo de sangue africano, e o terrível crime mereceu-lhe acusações de fraude e “apropriação cultural”. À semelhança de quase tudo nestes domínios, a “apropriação cultural” também é um conceito vago. Uma caucasiana pode ostentar “dreadlocks” jamaicanos? Depende. Se for uma dona de casa de classe média, não pode. Se for uma “okupa” com ardores pela “Palestina” e aversão pelo banho, pode e deve. E um esquimó com jeans, é ou não “apropriação cultural”? E um índio com conta de e-mail? E um alemão que come batatas? Muitas perguntas, nenhuma resposta. Ao invés do sexo, que pelos vistos é à vontade do freguês (a qualquer momento transformado em freguesa), a “raça” não é tão propensa a “identidades” instantâneas. E o resto é ainda mais complicado.

Nunca me ocorreu “identificar-me” como mulher ou aborígene. Porém, em tempos vim aqui identificar-me como cidadão não-contribuinte, na esperança de que o Estado deixasse de me cobrar impostos. Não deixou. E eu, à imagem do Manuel Maria que agora é Maria Manuel, sinto-me não-contribuinte desde a adolescência, tendência que se acentuou com o primeiro emprego, o primeiro salário, o primeiro assalto fiscal. Fascismo, é o que é. O mesmo Estado que, através da propaganda da DGS, implicitamente admite a hipótese de os homens menstruarem (pretensão que rivaliza com o terraplanismo no campeonato da toleima), não respeita as minhas inclinações, as minhas crenças, os meus sentimentos e, afinal, o meu “eu” profundo. O Estado não me respeita. Vendo bem, é justo, em parte porque eu e o meu “eu” profundo não respeitamos o Estado. E em parte porque, feliz e infelizmente, a vontade individual não altera os factos.

É redundante dizer que cada um tem, ou deveria ter, o direito de se “identificar” como quiser, seja mulher, homem, zulu, islandês, koala, rabanete, utensílio de cozinha ou óxido nítrico. E ninguém tem a obrigação de ligar ao assunto, ou à falta dele. O conflito de determinadas cabecinhas com a realidade não se alimenta. No máximo, se houver paciência, reage-se com polidez, pena ou compreensão. Ou indiferença, caso a paciência escasseie. Não se legitima nem se colabora com devaneios, sob pena de loucura colectiva. E não se elevam os devaneios a um estatuto consequente para terceiros. Se um excêntrico é livre de acreditar na Terra plana, não é preciso fingirmos concordar com receio de o ofender. E sobretudo não é aconselhável punir, material ou simbolicamente, quem o ofende.

A verdade é que os negacionistas de Aristóteles não beneficiam de grande protecção ou projecção. As tolices acarinhadas da nossa época são de conteúdo diferente, embora similar na tolice. Em Life of Brian, após Stan confessar a sua “transição” (“Quero ser uma mulher. De agora em diante, exijo que vocês me chamem Loretta. É o meu direito enquanto homem.”), o absurdo instala-se: “Stan: Quero engravidar. Reg: Queres engravidar?!  Stan: É o direito de qualquer homem engravidar se for esse o seu desejo. Reg: Mas… não podes engravidar! Stan: Não me oprimas! Reg: Não estou a oprimir-te, Stan. Tu não tens útero! Onde é que o feto se vai desenvolver? Vais mantê-lo numa caixa?” A comédia de há 45 anos é a ortodoxia de hoje, amputada de contraditório ou graça.

A ideia de que as mudanças traduzem invariavelmente um progresso benigno é, além de infantil, perigosa. Com frequência, e nem sempre com estrondo, as sociedades regridem, o atraso de vida alastra, a ignorância extrema impõe-se. É na ignorância que se fermenta o “wokismo” em voga, e é a ignorância que explica a incoerência terminal na aceitação e na rejeição das “identidades”. Todos podemos ser o que quisermos, excepto se quisermos ser o que, por isto ou por aquilo, os inquisidores de serviço não aprovam. As regras do abominável mundo novo são decretadas e aplicadas por doidos à solta e não, conforme acontecia até há uma ou duas décadas, pela biologia, pela física, pela lógica, ciências que aliás não seriam afectadas se o fisco me aceitasse como sou e me ignorasse.

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