Claro que não foi o comboio de Faro que apitou, foi uma boca borbulhando nuvens de fumo de cigarro que surgiu mastigando um longo assobio. O dono do assobio, um senhor que tinha uma muleta no lugar da perna esquerda, deslindou um banco vazio para descansar a pesada trouxa da idade – ninguém estava por perto para ajudá-lo, por isso levou séculos a desembrulhar a trouxa a colocá-la sobre o banco. E o assobio não parava, era reluzido, a todo instante, pela chama de isqueiro que tinha na mão.

Esperávamos todos pelo comboio que vai a Faro. Podia aqui falar da senhora de olhos azulíssimos que se sentou ao meu lado com duas caravelas enormes amarradas por ganchos gastos de sutiã no lugar dos seios, podia fazer do vendedor de bilhetes metido na sua salinha com uma janelinha de vidro e a lançar, como uma cobra cuspideira, trocos e bilhetes a uma pilha de passageiros que ia a Faro, mas eu falo do assobio para poder falar do incêndio.

Os ponteiros do relógio da estação nos seus galopes impenitentes anunciaram sem querer o atraso do comboio. Os ponteiros escalavam segundos, minutos e horas sem parar e uma voz cercada de ruídos, do nada, ladrou das colunas de som e anunciou o atraso do comboio. A senhora das caravelas navegou furiosa pela porta de saída e deixou-nos restos de insultos como velhos atiram côdeas de pão a pombos. “É com estes atrasos que o país vai avançar, sinceramente?”. Não teve resposta, mas por sobre a sua pergunta o assobio do senhor da muleta não parou de soar.

E naquele momento, quando as estilhas de um novo atraso caíram sobre os nossos ouvidos dos galhos das colunas de som, surgiu do minúsculo esconso da bilheteira uma senhora que babava de lágrimas, que tinha a palpitação do coração sobre as mãos e perguntou-nos a todos: “Vocês não sabem nada do incêndio?”. E claro que não sabíamos e talvez por isso o senhor do assobio ergueu a sua perna metálica, arregaçou uma das calças sem perna com um alfinete, cuspiu o assobio para o chão e gritou: “socorro, incêndio”.

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E o incêndio começou a esvoaçar-se sobre a estação de Loulé; era possível ver as suas gigantes chamas nos olhos aflitos do homem da bilheteira e na esponja de fumo em forma de nuvem que levitava como um trapezista no ar. Havia gente a correr com os pulmões cheios de fumo e medo, gente que se lançava o repto de voar sobre as chamas e gente desesperada que temperava as chamas com o sal das lágrimas.

A senhora voltou a perguntar em lágrimas sobre o incêndio e vi, naquele momento, gente saindo da estação em macas como pães sobre tabuleiros, ambulâncias amontoando-se na parte exterior da estação, bombeiros vestidos como astronautas pilotando répteis de mangueira e havia fumo em todo o lado. O comboio para Faro foi cancelado, jornalistas foram chegando à estação para entrevistar sobreviventes, relatar em directo o incêndio. (Afinal, de perto os jornalistas não têm frases correndo sobre o rodapé das barrigas).

Deu-me pena imaginar o senhor do assobio perdendo a única perna que lhe restava naquele incêndio, deu-me pena vê-lo, na imaginação, rastejando sobre o chão como as mangueiras dos bombeiros; e o senhor tentando um equilíbrio sobre a única muleta, mas a muleta não o obedecendo – recusando-se a levantá-lo e protestando sem ninguém ouvir: “achas que vou suportar uma criatura sem as duas pernas?”; e ele desbotando o rosto de súplicas: “por favor, tira-me desse lugar, há chamas.”

A estação de Loulé continuou em chamas. Vi uma das chamas abatendo o relógio como um touro numa arena, e os ponteiros caídos soluçavam horas e minutos de desespero. Já me esquecia, vi, também, um bombeiro ferido meditando sobre o seu fim dentro de uma máscara de oxigénio e vi a senhora perguntando novamente desfeita em lágrimas: “vocês não sabem nada do incêndio?”.

Depois, as colunas da estação anunciaram que as chamas tinham sido controladas e o comboio para Faro chegava em dez minutos. Claro que todos ainda estávamos assustados, recolhendo feridos, embalando cadáveres em sacos plásticos como rebuçados do Natal, juntando a cinza dos devorados pelo incêndio, compilando a lista nominal das vítimas e esperando pelo comboio para chegarmos a Faro. E o assobio já se tinha calado, o que se ouvia era a ponta da muleta do senhor tropeçando nos corredores da estação.

Doutro lado da linha férrea surgiu um cãozinho; um cãozinho branco com teias de aranhas nos pêlos, com uma das orelhas murcha e coroada por um enxame de moscas. O cãozinho, na sua atitude instintiva, olhou os dois lados para se prevenir do comboio e atravessou até se acorrentar entre as pernas da senhora aflita. “Onde andaste tu, Incêndio”. O senhor da muleta continuou com o assobio e no meio do assobio dava para perceber que nascera no mato pastoreando gado ou caçando passarinhos com uma fisga de borracha ao pescoço, o assobio é importante nessas actividades. Não me sai da cabeça o coto da sua perna estendida sobre a muleta, meu Deus.

Incêndio, o cãozinho, começou a ladrar para o senhor do assobio, mas ele, com a muleta em riste, colocou o cãozinho na ordem; a dona do cãozinho protestou: “o Incêndio é mais humano do que tu, coxo”. O comboio chegou, metemo-nos todos nele e fomos vendo a estação de Loulé apagando-se aos poucos pelas janelas e a senhora colocando uma trela apertada para controlar o Incêndio na estação ferroviária de Loulé.