A turma, como sempre, meteu-se na sala de aulas aos empurrões e à trote, os mais agitados derrubavam o silêncio com estrondos de gritos e os pontuais, como sempre, coitadinhos, tiveram de ficar acaçapados, em seus longos silêncios, e descarrilar os olhos cheios de admiração na carruagem barulhenta que invadia a sala de aulas. O que sofre a porta quando a carruagem chega!

É sempre assim: o grupo que se atrasa, sempre o mesmíssimo, depois de varrer o silêncio de todos, começa a entoar hinos de justificações, mas todos com o mesmo refrão colorido de uma aparente humildade “peço desculpas pelo atraso, professor”. O grupo senta-se, aliás, dispersa-se como algas sobre a costa, derruba as mesas e cadeiras com granadas de mochilas e ainda pousa sobre as carteiras restolhos fresquinhos de conversas que ficaram nos corredores da escola. E sobre esses restolhos: incendeiam gargalhadas. É sempre assim, é o mesmo grupo.

A aula, como um doente no berço de um hospital, reanima-se, recomeça e os pontuais ressuscitam tontos de atenção do fundo dos estrondos e pedradas de barulho como autênticos Lázaros da Bíblia. Os pontuais e os mais interessados, para sobreviverem, tiveram de dominar o milagre de ressuscitar quando o grupo serena e fixa-se no seu lugar: sempre no fundo da sala.

Deixando a carruagem de lado, há uma magia comovente na sala de aulas que não cabe em nenhum texto e nem neste; os olhos azuis da rapariga cheio de dúvidas que não consegue vomitá-las, mas que, aos poucos, vai piscando-os cheia de alegria quando descobre na ardósia a frase certa que ilumina tudo, o rapaz que come a turma inteira com os seus gulosos bocejos, soneca de olhos abertos e ressona pelas mãos que mexem a caneca para disfarçar tudo, a delegada de turma que se enterra dentro da mochila e mexe o telemóvel cheio de conversas sem interesse na aula, a colega da limpeza que escorrega no corredor como uma serpente atrás de um aluno que a puxa com uma trela de um assobio provocador e a rapariga que faz com o seu cabelo moreno uma pala para despistar os raios de sol que pousam sobre suas pestanas postiças.

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Digo-vos, há uma magia comovente na sala de aulas. E confesso que senti essa magia, há dias, com uma carga tão forte que me deixou tropeçar dentro de mim; um dos alunos, depois de aulas, segredou-me de forma terna e tão corajosa “professor, eu acredito que os estudos podem me levar longe”. Assim mesmo; eu ali como um padre a revistar na memória se havia algum pecado na frase e nada. Era uma simples frase que nem sequer ocupou-me dois segundos naquele momento, mas até hoje volteja-me sem parar.

Fiquei totalmente caído por dentro e eu ouvi o pumba nos batimentos desacertados do coração; o aluno acabava de me recordar que uma sala de aulas é, antes de tudo, um palco de desfile de sonhos. Eu já sentia uma certa energia desse aluno em todas as actividades: sempre cheio de dúvidas e sempre com os punhos cerrados para esmurrar qualquer obstáculo.

“Professor, eu acredito que os estudos podem me levar longe”, a frase sempre me ecoa quando entro na sala de aulas. A frase vigia-me em cada passo, porque sinto que devo ensinar e aprender dos alunos a sonhar. Estamos num momento em que quase ninguém sonha, quase ninguém acredita no poder que a educação tem, quase ninguém fala de sonhos nas escolas: perdemos a habilidade de sonhar, falamos de sonhos e pouco sonhamos. Estar numa sala de aulas e sonhar é talvez uma das elegantes e corajosas formas de fazer a revolução nos nossos dias.

O aluno disse-me isso, carregou a sua mochila e evaporou-se da sala deixando uma enorme cauda do seu perfume de suor. E eu mirava as suas costas que suportavam uma mochila cheia de sonhos, os seus passos tão lentos e esteticamente tão desordenados, mas muito aptos para longas caminhadas rumo ao futuro e aos sonhos. Houve uma confusão dentro de mim; pensava no aluno, pensava na sua entrega, pensava nos seus sonhos e perguntei-me sem parar: quantos alunos assim existem? Alunos que aprendem, alunos que se entregam e em trocam ensinam-nos a sonhar sem parar.

O aluno foi-se embora e uma funcionária, metida numa bata branca e cheia de vénias como um acólito, disse-me que era hora de fechar as portas da sala. Eu continuei ali, parado, totalmente desarmado, parcialmente perdido como um objecto não identificado depois de uma queda. Eu estava ali totalmente empanzinado de admiração e orgulho pelo aluno. Se fosse possível, colocava o miúdo a transfundir um pouco desse seu líquido preciso de sonhos a outros colegas.

É um aluno pobre, mas tão rico de sonhos que podem alimentar gerações e gerações. Às vezes a riqueza é isso: sonhar, tornar o sonho um hábito, manejar os sonhos sem medo como se movimentam os atacadores dos sapatos. É um aluno pobre, dava para ver pela sua mochila com as alças descosidas e com um metal qualquer no lugar da linha, pela sua camisola sem cor que lhe acompanha todos os dias e pelos seus lábios que mesmo à hora do almoço borbulhavam escamas esbranquiçadas de fome.

A escola, a sala de aulas podem ser pequenos espaços de tráfico de sonhos. É preciso sonhar para que não nos esqueçamos que temos alguma coisa que ainda nos pulsa dentro de nós, sonhar para que pelo menos tenhamos pouco espaço para pesadelos num mundo tão cruel, tão duro como o que construimos a cada dia.