Fixei-me há pouco tempo em Portugal. A primeira coisa que soube fazer em Portugal foi tomar o comboio, nas manhãs, de Olhão a Faro, e ao cair do dia fazer o percurso inverso. Fiz-me amigo de um velho fadista, de bares, que me falava de tudo sobre Faro e sobre Portugal. O que selou a nossa amizade, suposta, foi o facto de ter-lhe dito que sou de Moçambique e ele, lavado em lágrimas,  contou-me o horror que passou por lá. Falou-me da tropa colonial que lhe tirou uma vista, mostrou-me o dedo indicador que foi esmagado por molares de uma mulher negra quando, em grupo, tentavam violá-la. Conhece Moçambique e disse-me que sofria a cada ataque que acontece em Cabo Delgado. Disse-me que conhecia Mueda e foi por lá onde o cordão umbilical da sua vista ficou. Chorando por um olho, confessou-me, “apetece-me voltar a Mueda para, pelo menos, ver com o olho que me resta, onde perdi o meu segundo olho. Gosto daquela terra”.

O velho fadista canta fado de bar em bar, pisca o seu único olho e arruma o que já é cadáver em lentes escuras quando as horas de voltar a casa lhe pesam no pulso. O dedo esmagado e o olho rebentado foram a única herança que trouxe de Moçambique. Sinceramente, não sabia que teria um amigo assim. Se soubesse antes, confesso, confesso, que teria passado por Mueda para vasculhar o olho do velho e procurava a negra, abria-lhe a boca e tirava-lhe as carnes do dedo do velho. E pronto, tudo ficava como era antes. Chegava, procurava pelo fadista nos bares, tirava-lhe as lentes escuras e colocava-lhe o olho, exumava-lhe a mão da algibeira e arrumava-lhe a carne do dedo. E eu temo muito pelo olho do velho, temo que os terroristas cheguem a Mueda e esmaguem com catanas o olho do fadista. E eu não estou lá para impedir tudo isso. Digam-me a treta que quiserem, mas eu nem estou lá para impedir tudo isso…

“Este ano teremos de oferecer uma máscara embrulhada ao Pai Natal”, disse-me o velho quando conversávamos sobre o Natal em Portugal. Disse-me que estava tudo calmo, tudo metido num poço de silêncio e apenas os próximos dias é que podiam tirar desse poço uma caneca de alegria para o Natal.

E eu também pensei no poço de sangue que não parava de se abrir em Cabo Delgado. Pensei, tal qual o fadista, em oferecer um colete à prova de balas ao Pai Natal, uma granada de chocolate para se proteger durante a distribuição de presentes e munições embrulhadas com fitinhas de carinho. “Este ano teremos de oferecer uma máscara embrulhada ao Pai Natal”, porque o fadista diz que até ao Natal as ruas estarão movimentadas; até ao Natal haverá turistas demolindo a cidade com os falsos pirilampos que saem de suas câmaras fotográficas; até ao Natal haverá nas ruas carros apressando-se para as lojas; os berços das ruas estarão limpos e prontos para receber o Menino Jesus e os políticos continuarão disfarçando sorrisos enormes nos cartazes que poluem as nossas ruas. O fadista disse que me fixei num momento errado em Portugal, disse-me que até hoje as lojas ainda não plantaram enormes bonecos eléctricos nas entradas e ainda nem sujaram as vidraças com frases brancas e vermelhas de Feliz Natal.

Penso em Portugal, mas também penso em Moçambique. No Natal que se vai passar em Moçambique, com as velas de tiros ardendo sobre o bolo do desassossego em Cabo Delgado, nas crianças que aprendem a abrir uma cova com as mãos e enterram seus pais nas matas, nos velhos que já não crescem, mas deixaram a esperança de serem mortos amanhã e não hoje, penso na cidade de Maputo que se vai agitar, nos comerciantes que levarão o pouco que têm para as suas tocas e que serão atacados por homens armados no centro. Claro que em Moçambique também teremos de oferecer ao Pai Natal uma máscara e maquilhá-lo, disfarçar-lhe a barba para não terminar sequestrado.

Enquanto o fadista fala, não paro de pensar que sou visto por um único olho, o mesmo olho que vê todos os cantos de Faro, que vê todas as desilusões do mundo e que também chora o outro olho que ficou em Mueda. Fixei-me há pouco tempo em Portugal. A primeira coisa que soube fazer em Portugal foi tomar o comboio, nas manhãs, de Olhão a Faro, e ao cair do dia fazer o percurso inverso. Fiz-me amigo de um velho fadista de bares. O fadista toma um copo de vinho e lança uma gargalhada quando me fala da negra que tentaram violar, mas apenas um olho acompanha o salto do riso; o outro olho continua beijando a escuridão com a mesma humildade dos defuntos. E ele toma o vinho sem parar. E eu penso, dentro de mim, no Natal que ele terá. Deve ser chato piscar um olho ao Pai Natal.

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