Ainda antes de escrever a primeira linha deste texto já sei do que vou ser acusado – até já estou a ver as frases que encherão as caixas de comentários, onde serei de imediato condenado como um miserável avençado das empresas de celuloses. É isso que dita a habitual arrogância moral da esquerda e, sobretudo, da extrema-esquerda, aquela que dispara antes de pensar e insulta em vez de debater.

E sei muito bem porque é que isso vai acontecer: porque vou contrariar a ideia feita de que os grandes males da floresta portuguesa são todos obra da sua “eucaliptização”. Depois da tragédia de Pedrógão Grande, esclarece o sumo sacerdote e eterno ideólogo do Bloco, o prioritário não é determinar como foi possível um tal colapso do Estado na sua primeira missão de protecção dos cidadãos, nem apurar responsabilidades políticas, nem sequer tentar perceber, no terreno, como possível que o fogo se propagasse tão depressar nalguns terrenos ao mesmo tempo que deixava, aqui e além, umas manchas verdes. Para Francisco Louçã a “agenda do rescaldo” nunca passa por pedir contas a quem nos governa, antes por condenar quem está na oposição e, sobretudo, por “ter cuidado” com “as empresas do eucalipto” que estarão “a mover-se para proteger o seu baú”.

Como? Na cabeça conspirativa do nóvel conselheiro de Estado essas empresas irão aproveitar “a necessidade de posse administrativa dos terrenos abandonados para um movimento de concentração da propriedade, à espera de um novo governo que lhes favoreça a eucaliptização”. Por isso, acrescenta, é preciso pois ter cuidado com os “eucaliptocratas”, razão pela qual não há dirigente, deputado ou bota-faladura do Bloco que não fale do eucalipto mesmo sem saber daquilo que fala.

Infelizmente fazem-no em terreno fértil: primeiro, porque as empresas de celulose são ricas e dão lucro, e isso é pecado em Portugal; depois porque o eucalipto tem, sempre teve, muito má imprensa – às vezes com razão, outras sem ela. Quando a Catarina ou uma das manas Mortágua investe contra a chamada eucaliptolândia, os jornalistas que seguram os microfones quase acenam com as cabeças e depressa se esquecem de confrontar a sua doçura de hoje (quando morreram 64 pessoas num incêndio florestal) com a lendária agressividade dos tempos em que até as suas unhas encravadas eram culpa de Passos Coelho.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Infelizmente, acrescento ainda, porque o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, também cede à demagogia e ainda agora prometeu no Parlamento que “não haverá mais um único hectare de eucalipto em Portugal”.

Mas adiante, que o que conta é que o Bloco cavalga um preconceito – que é também o preconceito de muito renomado comentador, acrescente-se – e fala sem saber, o que não seria grave se a sua nova cruzada não pudesse ter como consequência uma floresta ainda mais miserável do que aquela que temos. Por isso, muito devagarinho e da forma mais didática possível, deixem-me explicar porque é que investir contra os alegados “eucaliptocratas” não é tão inocente e pueril como investir contra os moinhos de vento do Quixote. Bem pelo contrário.

Comecemos pelo princípio: se todos estamos de acordo que na origem da tragédia de Pedrógão Grande está uma floresta mal ordenada e mal tratada num território desertificado, a questão que temos de colocar é dupla: como contrariar a desertificação e como tornar a floresta uma fonte de riqueza capaz de ajudar à fixação de populações que a cuidem e tratem.

A resposta dos ignorantes é que terras como as de Pedrógão Grande estão desertificadas porque foram abandonadas ao eucalipto (alguns, menos cegos, talvez acrescentem que também foram abandonadas ao pinheiro-bravo), mas essa é uma resposta errada. Não só o abandono começou muito antes da chegada das grandes plantações de eucalipto, como para muitos do que ainda aí residem em meio rural o rendimento que tiram do eucalipto é dos poucos que lhes sobram. Tal como é o rendimento do pinheiro-bravo, de que vendem a madeira e de que ainda exploram a resina (cada vez menos).

E porque é que as pessoas plantam eucaliptos? Afinal nos três concelhos inicialmente afectados não há plantações das empresas de celulose (há uma quinta da Altri na região, mas é já no concelho de Góis). Há várias razões. Primeiro, o retorno do investimento no eucalipto é mais rápido: em oito a dez anos é possível cortar e vender as árvores. O rendimento é mais baixo do que o do pinheiro, mas quando estamos em áreas onde as florestas ardem de 12 em 12 ou de 15 em 15 anos (o tempo necessário para se acumular o material combustível que as transformam em barris de pólvora), o investimento também é mais seguro: é cada vez mais raro ver um pinhal crescer até aos 25 anos, idade boa para um corte.

Por outras palavras: não é necessário que os “abutres das celuloses” andem a rondar para as populações plantarem eucaliptos, às vezes a par com pinheiros, às vezes em todos os hectares disponíveis. Se quisermos que mudem de comportamento temos de encontrar os incentivos correctos, mas não se imagine que o Estado seria melhor proprietário e gestor, pois não é raro encontrarmos terremos públicos ao abandono (bem pelo contrário).

Mais: se conhecermos o terreno saberemos que as áreas melhor tratadas são, por regra, as que são geridas pelas empresas de celuloses. E com resultados, pois raramente ardem, quando ardem é sobretudo porque sofrem o impacto de fogos vindos de terrenos contíguos e, mesmo assim, registam uma relação área plantada/área ardida de 0,3%, cerca de dez vezes mais baixa à registada na média nacional se considerarmos apenas os povoamentos florestais.

Isto acontece porque nessas florestas “das celuloses” (e apenas um quinto das plantações de eucalipto pertencem directamente a essas empresas) se trabalha no Inverno e na Primavera para prevenir os fogos de Verão, porque há zonas de descontinuidade e porque há corpos profissionais de bombeiros que conhecem o terreno e sabem exactamente onde podem parar um fogo. Ainda agora neste grande incêndio vimos os bombeiros à espera do fogo nas estradas ou na protecção das aldeias, enquanto as equipas da única empresa afectada estavam na floresta, curiosamente apoiados pelos bombeiros galegos que estavam encostados e sem fazer nada porque, como disse a ministra, não havia missão para lhes entregar. Resultado: dos 600 hectares de plantação da Altri em Góis (400 de eucalipto, 200 de pinheiro), apenas arderam 14.

E só mais uma nota: quem já esteve no terreno depois do incêndio notou (e eu já vi as fotografias) que entre as raras manchas verdes que resistiram numa paisagem totalmente negra estão algumas plantações recentes de eucaliptos. Estranho? Não se pensarmos que nesses terrenos há menos combustível acumulado e houve cuidado para que as árvores novos pudessem crescer.

Servem estes exemplos apenas para sublinhar um ponto: nunca conseguiremos reformar, reordenar e tratar a floresta portuguesa se quisermos destruir, ou mesmo apenas diabolizar, a única fileira florestal integrada e a que gera mais dinheiro e recursos. Ou seja, necessitamos do eucalipto e das suas receitas não apenas para que não desapareça totalmente a economia do interior despovoado, como necessitamos dos recursos que a exploração do eucalipto pode gerar para investir noutro tipo de floresta.

E escrevo tudo isto sem nenhuma espécie de simpatia pelo eucalipto, espécie que importámos da Austrália e me é estranha – escrevo-o antes na convicção de que sem esses recursos o que está abandonado mais abandonado ficará, e que em vez de eucaliptos e pinheiros veremos as nossas serras cobertas pela pior das espécies invasoras, as acácias, que não só alimentam o fogo como se alimentam dele.

Claro que tudo isto faz imensa confusão ao Bloco e deve fazer ainda mais confusão ao dr. Louçã, pois significa envolver empresas, e empresas grandes, e empresas que exportam, e empresas que dão lucro e criam emprego. Porém se escutarmos as poucas vozes sensatas que ainda se vão ouvindo no meio de toda esta vozearia até encontramos algumas sugestões inteligentes sobre como isso poderia ser feito.

Foi isso mesmo que encontrei num post de um especialista, Henrique Pereira dos Santos, em que este cita um responsável florestal da Altri, o holandês Henk Feith, que alvitra algo que me pareceu bastante sensato: a criação de “créditos de biodiversidade”. A sua ideia é que o plantio e exploração de espécies “comerciais” – como o eucalipto, mas também como o pinheiro-bravo, o pinheiro-manso e até o sobreiro – suportaria o plantio de espécies nativas “não comerciais”. Seria, explica ele, “um pouco como o mercado de carbono, mas para floresta nativa. Uma fábrica que emite CO2 tem de comprar créditos de carbono; uma floresta comercial pode ter de comprar créditos de floresta de conservação. Quem planta 10 hectares de floresta de produção tem de ter ou financiar um hectare de floresta de conservação. Assim, o investimento florestal impulsiona a conservação da floresta. Em vez de proibir, promove-se o equilíbrio.”

É viável? Não vejo porque não. E o que sei é que o proibicionismo cego dos “eucaliptofobos” não resolve problema nenhum, antes se arrisca a agravar ainda mais os que já temos. Escrevo sobre fogos e floresta há mais de 30 anos, cheguei a percorrer o país com a intenção de demonstrar os males do eucalipto (uma das minhas derradeiras investigações para o Expresso, no longínquo ano de 1989), nunca recebi um tostão de qualquer empresa de celuloses (esta deixo aqui só para os que estão a espumar desde o primeiro parágrafo), mas prefiro o conhecimento ao preconceito. E, até porque não ando à cata de votos fáceis, não entro em demagogias. Não posso dizer o mesmo das carinhas larocas do Bloco, e até peço desculpa a Jerónimo de Sousa por assim o citar.