Quero começar por afirmar o evidente: se até de doenças para as quais existem vacinas e tratamentos se morre, com a Covid-19, mesmo que todos (autoridades e cidadãos) tivessem adoptado com rigor as medidas adequadas, seriam inevitáveis mortes. Contudo, desde, pelo menos, Junho de 2020, deixou de ser admissível a retórica da imprevisibilidade e do desconhecimento do vírus para justificar aos mais incautos determinadas incompetências trágicas.

Ignorando que a existência do vírus era conhecida desde, pelo menos, Dezembro de 2019, e “dando de barato” os meses de Março, Abril e Maio de 2020, em Junho já existiam vários dados importantes acerca do comportamento deste microrganismo e de como mitigar a sua propagação, nomeadamente: a necessidade do uso generalizado de máscaras, do distanciamento social, da limitação de contactos, da climatização e arejamento adequado dos espaços fechados, da desinfecção recorrente das mãos e superfícies e das medidas de etiqueta respiratória. Era, também, conhecido que o SARS-CoV-2 induzia quadros clínicos graves predominantemente em grupos de risco específicos (pessoas com morbilidades e idosos). No que diz respeito às crianças e aos adolescentes, existiam indícios de que se poderia estar a desvalorizar o seu papel na transmissão viral, sobretudo, porque sendo maioritariamente assintomáticas, estas faixas etárias não eram muitas vezes identificadas como a origem do surto familiar ou comunitário. Por último, a comunidade científica, mediante a mais que provável indisponibilidade de um tratamento ou vacina, demonstrava já sérias preocupações com o Outono/Inverno e alertava os países para a necessidade de planearem adequadamente esse período.

Perante todo este conhecimento, o que se fez? Planeou-se atempada e devidamente o regresso das mais diversas actividades económicas e sociais, a protecção dos grupos de risco e a organização do sistema de saúde para responder ao cenário previsível? Apostou-se num discurso de contínuo alerta, de forma a que as medidas de prevenção de contágios se tornassem um hábito e assim se minimizasse o impacto sanitário e socioeconómico? Não. Assistimos, antes, a várias situações deploravelmente populistas, ziguezagueantes e promotoras do facilitismo. Bateram-se palmas demagogas aos operários da saúde, falou-se em milagres, premiaram-se operários da saúde com jogos inúteis, confessou-se que não se esperava um agravamento da situação epidemiológica, afirmou-se que não se viu nada de especialmente grave em situações de incumprimento das orientações das autoridades, continuou-se a não dar a resposta exigível aos doentes não COVID ou relativizou-se a morte de vários idosos num lar por aparente negligência grosseira.

Por fim, no período pré-Natal, acontece o impensável. Reitero, ocorreriam sempre mortes por Covid-19. Porém, o cenário epidemiológico e clínico existente à data possibilitava o alívio de medidas restritivas, sobretudo quando essa suavização ocorreria num período que, salvo um milagre, redundaria inevitavelmente num maior número de mortos? Fazer-se o possível para o evitar (autoridades e cidadãos) ou baixar conscientemente a guarda, desprezando vidas, é a mesma coisa? Aqui e aqui já discorri acerca de atributos culturais lusitanos reveladores de um diminuído altruísmo. Desta forma, as autoridades, nas suas decisões, deviam ter sempre em conta tais características e não presumir, ou tentar convencer-nos com elogios chauvinistas parolos e anacrónicos, que somos aquilo que não somos. De 16 a 23 de Dezembro de 2020 morreram 610 pessoas com Covid-19 (dados da DGS), o que corresponde a uma média de 76 mortes por dia e três por hora. Decisão? Aliviaram-se as medidas restritivas no Natal e Ano Novo sob um “compromisso de confiança” com os portugueses… Um “risco calculado”, como ouvi dizer. Mas o que é que isto significa perante a mortalidade Covid actual, a saturação do sistema de saúde a que assistimos e a desmarcação de tratamentos a doentes prioritários com outras patologias, colocando-os em risco de vida (por incapacidade do SNS e preconceito ideológico)? Que valeu a pena não privar a população de adiáveis convívios e repastos familiares (risco-benefício)?

Há sempre tanta (e, obviamente, legítima) repulsa e veementes protestos públicos perante a possibilidade de legalizar a decisão consciente de um indivíduo [numa condição facilmente reconhecida por quem não esteja privado de empatia como incompatível com viver dignamente (diferente de permanecer vivo)] solicitar ajuda para abandonar a Existência e nenhuma ou escassa indignação com a morte de pessoas frágeis por indevido planeamento das autoridades, escassa cautela alheia e deficiente assistência e/ou proteção. Assustador…

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