A anatomia de um atrasado compulsivo começa nas desculpas que se alimentam por uma série de expectativas que têm sempre por base um misto de esperança e certeza em relação à tolerância e compreensão da ‘vítima’ ou das ‘vítimas’ do seu atraso.

A culpa vai residir sempre no transporte público que chegou atrasado ou não compareceu no horário previsto situação que o metro veio irritantemente baralhar devido à forma como o seu horário é cronometrado naqueles painéis infalíveis. Se não for o transporte, o atrasado compulsivo vai sempre encontrar no trabalho, no trânsito, naquela consulta que era suposto durar x tempo e demorou o seu dobro, ou no tempo de uma qualquer fila desta vida que milagrosamente se formou e prometeu durar uma vida altamente inesperada, ou até noutra situação qualquer mais ou menos original dependendo da pele criativa do atrasado.

Enfim, a culpa vai ser sempre de alguém ou de algo, tudo menos do atrasado, que se sente uma vítima do tempo, sempre parco e insuficiente para conseguir chegar a horas a todo o lado, ou a um núcleo de situações ou pessoas.

Falo desta forma porque já vesti os dois papéis, sobretudo o de atrasada e confesso a minha culpa.

Colecciono na algibeira minutos que não me pertencem e que não posso devolver. São minutos de uma ou outra vida que não a minha, são pessoas cuja vida deixei a levitar no vazio enquanto viviam os meus constantes minutos de atraso.

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Se por um lado sempre fui exímia nas horas em relação a tudo o que são as responsabilidades da vida, fui durante anos a fio extremamente desleixada com aqueles que tinha na minha zona de conforto, aqueles que considerava de certa forma parte da minha pele com destaque para uma ou outra pessoa.

Vivia na expectativa que essas pessoas sempre iriam compreender a forma como eu achava que o tempo estava constantemente a vencer a minha vontade, porque a minha vontade é certo que era chegar naquele tempo pré-definido perto daquela pessoa até porque um atraso significaria sempre menos tempo para usufruir até que num certo dia alguém me disse: — tu não me respeitas.

Aquilo caiu-me como uma bomba, uma daquelas bombas que explodem no colo dos nossos 20’s e por lá ficam a rondar a arrogância abdominal altamente ofendida até que um dia pensei a fundo naquilo e percebi que era e é na realidade uma verdade absoluta.

Não apenas sobre mim, mas sobre todos nós ou sobre uma grande maioria dos seres humanos da era do tempo presente que relaxam em relação ao tempo dos outros e o tempo é coisa séria, porque ninguém o pode devolver.

Os atrasados, os ex-atrasados e os pontuais, no fundo todos os seres humanos nos queixamos de forma recurrente porque tínhamos uma consulta médica às 10, mas só fomos atendidos às 11, porque na pirâmide da vida de uma sociedade atrasada existiram pessoas que desrespeitaram o nosso tempo, atrasando-se.

É fácil perante este exemplo recordarmos que alguém soltou na sala de espera, a tremenda falta de respeito inerente ao atraso de um qualquer serviço público ou privado.

Ensinaram-nos desde tenra idade que não se chega atrasado à consulta médica até porque há alguns anos atrás costumavam começar mesmo na hora prevista ou a uma panóplia de situações que envolvem marcações em múltiplos serviços da vida quotidiana, reservando claro está algum espaço para excepções a esta realidade.

Acabamos por nos habituar hoje em dia a que estes serviços não vão começar na hora estipulada, portanto não tem mal chegarmos também nós uns minutinhos atrasados alimentando a bola de neve do tempo que não se repõe e constantemente é adiado.

Esta bola de neve, merece a nossa atenção uma vez que cabe a todos e a cada um respeitar os outros e o seu tempo.

Somos escravos do tempo e por vezes ele realmente parece não chegar para tudo o que gostaríamos no entanto, o tempo é uma entidade superior que não podemos devolver a quem o roubamos, seja alguém próximo ou por e simplesmente um cliente de X serviço.

O tempo é talvez o bem mais valioso que habita na terra e por isso devemos ter atenção ao que fazemos com o nosso tempo e com o dos outros, que em medida alguma nos pertence.

O aperfeiçoamento pessoal não passa apenas por sermos melhores pessoas da porta de casa para fora, passa e começa sobretudo dentro da nossa casa e a partir daí os primeiros que merecem as nossas melhorias, são os nossos, aqueles que fazem a nossa pele brilhar todos os dias fora de portas e não merecem que os desiludamos, porque estes detalhes aparentemente simples desiludem e muito.

Por fim o caminho continua fora de casa com todos os outros seres humanos.

Se queremos e exigimos respeito, temos de dar o exemplo, já basta sermos escravos do tempo. Será que é mesmo necessário desrespeitarmos os outros ao ponto de coleccionarmos só porque sim os minutos das suas vidas, minutos que neste ciclo do tempo acabam também por nos ser roubados nas nossas múltiplas actividades quotidianas, porque a sociedade cada vez menos respeita o espaço e o tempo do outro?