“Tenho saudades das minhas amigas”, disse ontem a minha filha mais nova à mãe. “Posso fazer uma chamada vídeo para as ver?” E então, minutos depois, a nossa Madalena falou com a outra Madalena e a câmara do telemóvel transformou-se numa extensão dos olhos da pequena. “Este é o quarto dos meus pais. Aqui está o meu pai, deitado, deve estar a ver e-mails… Esta é a nossa casa de banho…. A nossa sanita… o nosso bidé… O nosso lavatório… Aqui é onde tomamos banho… Agora vou mostrar-te a despensa…”
Antes disso a Carolina já tinha estado a conversar com a Luísa. Falaram da aula de música que tinham tido minutos antes (por vídeo, claro, com a professora a orientar os alunos todos num coro em forma de mosaico nos écrans), do ponto de situação dos trabalhos de casa que têm para fazer, das amigas que têm vontade de ver novamente, dos desenhos animados preferidos, dos brinquedos que as têm entretido. E há dias, numa chamada dessas em grupo, a Carolina e três amigas foram todas para os quartos dos pais saltar em cima dos colchões. Eu tinha acabado de fazer a cama, mas não podia ter ficado mais contente por a ver desfeita minutos depois. Durante uns instantes, ao longe, aquelas miúdas encontraram um fio condutor que as juntou aos pulos.
Passamos boa parte do tempo a restringir o acesso das crianças aos telemóveis e tablets. Mas, em tempos de medidas de exceção, soluções de exceção. Agora é à fartazana, sem dieta de écrans. Cada vez que uma das minhas filhas pedir para ver alguém importante na vida dela, se do outro lado houver disponibilidade e se não forem horas inconvenientes, faremos a chamada.
Há dias, quando a minha sobrinha fez 26 anos, foi graças ao vídeo do Instagram que lhe cantámos os parabéns em simultâneo. O pai, a mãe, a melhor amiga, nós os quatro, a avó em alta voz no telefone do namorado e a outra tia numa chamada vídeo pelo Messenger com o telemóvel do irmão apontado para o telemóvel da mãe. Não foi o melhor exemplo de conectividade e sincronia, mas aquilo foi multimédia dos afectos ao mais alto nível. Vários equipamentos, diferentes tecnologias, aplicações distintas, mas todos juntos naquele aniversário, num coro pouco afinado de vozes que não entraram ao mesmo tempo mas todos a cantar a mesma canção. Juntos. A Inês não nos tinha com ela, mas estávamos com ela. Naqueles minutos, ela foi o centro do nosso mundo enquanto nos víamos uns aos outros à distância.
E, num dia do início desta semana, depois de jantar, quando nos preparávamos para começar a logística dos pijamas, lavagens de dentes, e arrumar o quarto antes de dormir, o Miguel e a Rita fizeram uma chamada de vídeo pelo WhatsApp. Para nós e para a Xana, que estava em casa dela. Depois juntaram-se o Filipe e a Sofia – em casa, claro. E ali, durante uns minutos, falámos do dia, de como estávamos a lidar com aquilo, da dificuldade em conciliar filhos e teletrabalho, das birras dos miúdos e das distrações dos crescidos. Quando terminámos a conversa já a Carolina estava atravessada no sofá, cheia de sono, e a Madalena pedia para ir para a cama. A rotina foi para as urtigas, mas pela melhor das razões. E acabámos o dia confortados: vimos amigos, brindámos com eles, ouvimos-lhes as vozes e vimos-lhes os rostos.
As chamadas vídeo são uma ferramenta essencial para o teletrabalho – hoje mais do que nunca – e há muito tempo que nos habituámos a esta ferramenta para estar com amigos que vivem longe. Sempre que é possível, é assim que falamos com o Ricardo no Luxembrgo, com a Filipa em Madrid, ou com o Carlos em Dusseldorf. Mas, nos últimos dias, com a vida virada do avesso e as relações sociais reduzidas às pessoas que vivem connosco, o Facetime, o WhatsApp, o Messenger, o Skype, o Instagram, o Zoom ou outra coisa qualquer que eu não tenho mas sou capaz de instalar levam a mesma emoção ao Porto, a Oeiras, a Benfica ou à casa do vizinho de cima. As pessoas do nosso quotidiano agora só nos chegam por esta via.
Abro o Facebook e o Instagram e vejo imagens de écrans divididos com fotografias de gente em cenários diferentes. Uns brindam, outros pousam o telemóvel sobre a mesa e partilham uma refeição, uns quantos cantam. Estamos separados mas estamos juntos, partilhamos os abraços por ali enquanto não os podemos partilhar no corpo a corpo.
Não sabemos ainda quando é que vamos poder estar novamente com a nossa família e os nossos amigos. Esses todos cujos nomes queremos dizer e repetir e escrever, para termos a certeza que não nos esquecemos de ninguém quando marcarmos as almoçaradas e as jantaradas que vão assinalar o fim das prisões domiciliárias. Até lá, não nos falte o wifi. E se antes tínhamos bom senso para não fazer por vídeo o que se podia fazer apenas em áudio ou por escrito, agora essa sensatez talvez vá para as urtigas por causas maiores. Posso ser eu, que estou a sentir falta de falar com pessoas de carne e osso, mas tenho ideia que, quando isto acabar, sou capaz de fazer chamadas vídeo para pedir a alguém para trazer pão para um jantar.
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