Sendo, na aparência, um dos poucos portugueses que não é cidadão dos Estados Unidos da América, pouco falo de Donald Trump. No máximo, com as raríssimas pessoas com quem falo de política, o que me vem à cabeça é dizer que, com a excepção de Donald Trump, tudo conspira para me fazer simpatizar com Donald Trump. Não é um raciocínio muito elaborado, mas confesso que ao ler notícias em jornais onde, a partir de uma fotografia de Trump com os atacadores do sapato direito desapertados, se elaboram desenvolvidas doutrinas sobre a sua política nacional e internacional, é aquilo de que sou capaz.

No entanto, o seu reconhecimento ontem de Jerusalém como capital de Israel, no seguimento de uma decisão do Congresso americano datada de 1995, levou-me a sentir com ele um acordo que antes nunca experimentei inteiro. Porque, na malsã atmosfera de hipocrisia política em que se vive, o gesto não é despiciendo e manifesta, contrariamente ao que por aí imediatamente se escreveu, alguma sensatez. Traz problemas? Traz, sem dúvida. Mas representa a possibilidade de um novo início das coisas, que rompa com a hipocrisia vigente quando se fala do Médio Oriente, que tudo na aparência igualiza para na verdade sistematicamente condenar Israel desde o princípio. Não digo que a hipocrisia não seja por vezes necessária em política (e, de resto, nas relações humanas em geral) e não tenha, em certas situações, bons frutos. Acontece que neste caso preciso nenhuma necessidade a guia e os frutos são maus.

Em 2003, publiquei conjuntamente com Fernando Gil um livro intitulado Impasses, seguido de Coisas vistas, coisas ouvidas, por Danièle Cohn. O livro lidava com a reacção ocidental ao 11 de Setembro e ao terrorismo islâmico, incluindo um capítulo sobre a segunda guerra do Golfo. Antecipando tudo o que se dirá e escreverá por estes dias acerca de Israel, fui reler algumas páginas então escritas. Reproduzo aqui uma passagem do livro. Dada a sua extensão, decidi omitir as referências ao que então era a opinião comum do muito que se publicava. Guardo apenas uma que é particularmente ilustrativa. Miguel Sousa Tavares explicava por essa altura que Israel é “a maior ameaça à paz mundial”, continuando: “Se algum dia o planeta implodir, vai ficar a devê-lo a Israel e à dependência política do establishment americano relativamente ao lobby israelita dos Estados Unidos”. Israel, note-se, é “a maior ameaça à paz mundial”. O que se segue, entre aspas, é o que no livro é dito em relação a essa doutrina comum, com que teremos de voltar a conviver em breve, sobre Israel. Limitei-me, tirando pequenos detalhes, a alterar o texto num ponto: duas afirmações citadas vêm agora com os seus autores devidamente identificados. (Quando escrevemos o livro, Fernando Gil e eu optámos por não referir directamente os autores, porque o que nos interessava era estabelecer o quadro geral de uma atitude dominante na opinião publicada no que respeitava ao pós-11 de Setembro.)

“A questão de Israel é infinita. Os pontos serão portanto aqui selectivos. O ódio a Israel não foi sempre, muito pelo contrário, uma característica da Esquerda. Ele acompanha-se da descoberta, nessa mesma Esquerda, de uma paixão, a que nada historicamente a obrigava, pelo terrorismo. Israel é uma sociedade democrática (segundo qualquer um dos critérios ao nosso dispor: critérios que remontam ao exemplo do exercício da sociedade ateniense no século V a. C.), rodeada de sociedades que, segundo esses mesmos e exactíssimos critérios, não são, nem de perto nem de longe, democráticas.

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“O ódio a Israel relaciona-se com uma tendência relativamente recente de uma parte substancial da Esquerda a, em linguagem e em acto, abandonar os patamares da democracia. O ódio a Israel – e, diga-se por fim, a palavra ódio não é exagerada – tem a ver com o desprezo crescente que essa mesma parte da Esquerda ostenta pelos regimes do Ocidente e pelas democracias representativas (“socialmente fascistas”, nas palavras do Prof. Boaventura Sousa Santos). Israel é objecto do desprezo que só timidamente – e por vez ou outra mais atrevidamente – se enuncia em relação à democracia em geral.

“Percebe-se. Israel: sociedade democrática responsável por si mesma. Israel: sociedade onde os actos do Governo são fiscalizados e censurados através do voto. Israel: sociedade onde os cidadãos livremente se manifestam contra as decisões políticas do seu Governo. Israel: sociedade onde a vida dos cidadãos é livre, onde, entre outras, as coisas do amor são abertamente discutidas. Israel: sociedade onde o masoquismo “suicida-ideológico” não faz parte dos costumes políticos e onde, como optimamente Alain Finkelkraut escreveu um dia, não se encontra nenhuma disposição para “expiar os horrores da história ocidental”, porque parece aos seus cidadãos – e não se vê como lhes negar autoridade para essa reflexão – “terem sofrido eles próprios mais do que lhes calhava nesse capítulo. Israel (ainda nas palavras de Alain Finkelkraut): “pequena nação: pequena em superfície; pequena em número de cidadãos; pequena no sentido mais profundo em que a sua existência não se encontra automaticamente garantida, em que permanece contestada trinta e cinco anos depois da criação do Estado [Finkelkraut escrevia em 1983]”. Israel: sociedade cuja auto-defesa – os problemas são esses, e não os mais alambicados da “auto-estima” – se joga dia-a-dia, contra terroristas que assassinam cegamente. Israel: voltemos ao princípio – sociedade democrática.

“O ódio a Israel é o ódio recalcado que uma parte do Ocidente vota a si mesmo. Não é acidental que as críticas à democracia e as críticas a Israel se fundam no mesmo gesto. Elas transcendem largamente a preocupação com os sofrimentos que palestinianos ou israelitas experimentam no seu dia-a-dia. De facto, nada disso conta – nada disso tem de contar. O que interessa é a questão da existência, pura e simples, de Israel: é ela que está perpetuamente em causa. Tal como a da democracia.

“O jornalista (Miguel Sousa Tavares) que escreve que Israel é “a maior ameaça à paz mundial”, diz, sem obviamente o dizer com as palavras todas, que a democracia é a maior ameaça à paz mundial. Quando, levado pelo seu alegre raciocínio, conclui: “se algum dia o planeta implodir vai ficar a devê-lo a Israel”, diz (continuando a não se servir das palavras todas) que a democracia é a causa da destruição do mundo. E pode bem ser que venha a ter razão. Esperemos que não, mas pode ser que sim. Em todo o caso, não convinha que falasse como se estivesse a falar defendendo a democracia: o que ele pede é que se abdique de tudo. Não de várias coisas acidentais e secundárias, nem sequer daquilo que poderíamos pensar, com razão ou sem ela, ser o essencial – mas de tudo; nada mais e nada menos do que de tudo. Está, em suma, a pedir uma coisa impossível. Em primeiro lugar, impossível para ele mesmo. Mas não está, sem dúvida, a ser original.”

Citei esta longa passagem – escrita, repito, em 2003 – porque o que vem aí vai ser mais do mesmo. Não é que Israel não seja continuamente demonizada. É-o, de facto, sem interrupção. Não há cantor pop que não se veja policiado pelos profissionais dos “boicotes”. Mas a intensidade aumentará por estes dias. Entre outros por aqueles que, em nome de “negociações de paz” que se perpetuam de modo puramente fantasmático, desejam a todo o custo manter uma ficção que lhes é conveniente: a da possibilidade de um acordo entre quem quer continuar a existir e aqueles que apenas desejam a destruição. O que Trump fez tem pelo menos um mérito: introduzir um novo princípio num estado de coisas onde nenhuma solução verdadeiramente era possível. Pelo menos, com Jerusalém como capital de Israel, as coisas ficam mais claras. O que a médio prazo só pode ser bom.