Tenho olhado pouco para a televisão nestes últimos tempos, mas esta segunda-feira apanhei-me inadvertidamente a ver o “Jornal das 8” da TVI, mais precisamente a primeira intervenção de Miguel Sousa Tavares. Não costumo ver. Sobretudo desde que o ouvi, creio que na “Rádio Observador”, a falar sobre literatura, uma ideia tomou definitivamente conta do meu espírito: acredito que as suas intenções no que toca à arte literária sejam as melhores, mas o grau de inconsciência, superficialidade e ignorância que ele atinge não pode deixar de contaminar o que ele pensa sobre o mundo, por muito que também aí a intenção seja magnífica.

Mas, como ele estava a falar do actual conflito entre Israel e os palestinianos, não tive coragem para mudar de canal ou desligar a televisão. E a verdade é que, à sua maneira, os minutos que aquilo durou não foram completamente inúteis, para além de confirmarem a ideia que já antes era a minha. O que disse, então, Miguel Sousa Tavares? Primeiro, que Israel era um Estado “à margem da lei”. Depois, que os israelitas entraram numa “deriva louca”. Em terceiro lugar, que o responsável directo da actual situação é Benjamin Netanyahu. Quarto, Israel é culpada de uma “escalada desproporcional”. Prova? Os rockets palestinianos só mataram até agora (números de segunda-feira) dez israelitas. Quinto, resta ao mundo uma única esperança: que a esquerda do Partido Democrata americano force Israel a travar imediatamente a sua política na região. Em sexto e último lugar, é impossível evitar a comparação com os nazis e arredar do espírito a ideia de que Israel se encaminha para a adopção de uma “solução final” para os palestinianos.

É claro que nem uma só destas ideias tomadas individualmente, ou o magma que elas em conjunto formam, tem o que quer que seja de original. Miguel Sousa Tavares limita-se a expor o argumentário corrente dos que nos jornais, nas televisões e, suponho, nas “redes sociais”, condenam Israel por tudo e mais alguma coisa, quaisquer que sejam as circunstâncias, e põem em causa a legitimidade da sua existência (entre nós, e ficando-nos pelos mais ilustres, José Saramago e Boaventura Sousa Santos, por exemplo). Mas é justamente a banalidade e a indigência do raciocínio (chamemos-lhe assim) que confere algum interesse às suas palavras. À sua maneira, elas são exemplares de uma atitude muito generalizada e, por isso mesmo, vale a pena referir as ideias uma a uma.

Israel é, portanto, para Miguel Sousa Tavares, um Estado “à margem da lei”. Não cumpre resoluções das Nações Unidas e goza de um estatuto de impunidade, que não cessa de aproveitar sem vergonha ou arrependimento. Eis lindas palavras, de facto. Aparentemente, Israel viola permanentemente os princípios universais dos direitos humanos e comete repetidamente agressões contra outras nações. E é verdade que o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas já condenou mais vezes Israel do que praticamente o resto de todos os outros países juntos. E, se pensarmos em grande parte desses países, dificilmente se poderá achar normal que assim seja. Para mais, um país que, em todas as guerras em que se viu envolvido, agiu em auto-defesa contra inimigos que por inteiro negavam o seu direito à existência, não parece o melhor candidato a Estado fora-da-lei, além de que uma democracia sólida na qual a preocupação com o bem-estar dos seus cidadãos é coisa primeira (como agora se viu com a vacinação contra a Covid) não se oferece espontaneamente como perfeito exemplo de regime facinoroso. Mas, se Miguel Sousa Tavares quer alinhar com o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, está, é claro, no seu perfeito direito. É difícil levá-lo a sério, mas está no seu perfeito direito.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Além disso, Israel entrou aparentemente numa “deriva louca”. Esta da “deriva louca” é um pouco difícil de perceber, e isso exactamente por causa daquilo que é referido no primeiro ponto. Como falar de “deriva” – ainda por cima “louca” – de um Estado que acabou de se qualificar de fora-da-lei? Uma “deriva” representa forçosamente uma excepção, um desvio face a uma rota normal. Ora, se Israel é efectivamente um Estado “à margem da lei”, os males que lhe possa acontecer cometer não constituem de modo algum uma deriva, mas antes a expressão natural da sua substância. Cabe a Miguel Sousa Tavares um esclarecimento cabal daquilo que ao comum dos mortais aparece necessariamente como uma contradição gritante.

O responsável directo da actual situação é Benjamin Netanyahu, assegura-nos Miguel Sousa Tavares. O que quererá isto dizer? Que Netanyahu infiltrou as forças do Hamas em Gaza e lançou milhares de rockets sobre Israel, com o pérfido intuito de atingir os seus concidadãos? Aparentemente, sob esta forma ou outra (Netanyahu teria provocado o Hamas ao lançamento dos rockets), é a única explicação possível (espero que ele não compre a história das expulsões de alguns árabes de Sheikh Jarrah, depois de anos de batalhas legais, pela Corte Suprema de Israel, porque isso relevaria de uma ignorância demasiado profunda que não quero considerar). Sendo a única explicação possível para a tese de Miguel Sousa Tavares, é, ao mesmo tempo, declaradamente absurda. Por acaso, eu tenho uma pequena ideia, Deus me perdoe, do que lhe passa pela cabeça. E o que lhe passa pela cabeça é que toda a actividade está, por definição, do lado dos israelitas. Do lado palestiniano, há apenas passividade e reactividade. A actividade traz consigo a culpa – a passividade, a inocência. Acontece que uma sociedade apenas movida pela passividade e pela inocência é uma sociedade de crianças, capazes apenas de comportamentos reactivos. Dito de outra maneira: Miguel Sousa Tavares considera os palestinianos criaturas infantis, incapazes de comportamentos adultos. O que, se não se pode declarar taxativamente como uma atitude racista, anda muito perto disso. Mas, sem dúvida, Miguel Sousa Tavares terá uma explicação diferente desta, própria a partilhar com o mundo.

Miguel Sousa Tavares crê também que a resposta israelita representa uma “escalada desproporcional”. Prova? Os rockets palestinianos só mataram (números desta segunda-feira, repito) dez israelitas. Passo por cima de um detalhe: poderia, de facto, falar-se de “desproporcionalidade” se se tratasse de uma resposta a uma agressão. Mas Miguel Sousa Tavares perfilha a tese de que a agressão teve origem, de uma forma ou de outra, em Israel. Portanto, não se percebe. Mas deixemos isso de lado e concentremo-nos nos dez mortos. Não perceberá ele que o número de dez mortos, apesar dos milhares de rockets do Hamas, se deve à eficácia do sistema de proteccção anti-rockets israelita, a chamada “Cúpula de Ferro”? Um sistema construído para proteger os israelitas, judeus ou árabes, dos ataques sistemáticos do Hamas e de outros grupos terroristas que abundam na região, que têm, de resto, o hábito de se servir dos civis como escudos humanos? Também por aqui, e por razões, desta vez, não lógicas mas factuais, a ideia da “desproporcionalidade” vai por água abaixo. Mas talvez Miguel Sousa Tavares possa brindar-nos com uma explicação luminosa da racionalidade dos seus cálculos e oferecer-nos a teoria, há muito esperada, da proporção justa.

Miguel Sousa Tavares deposita uma esperança sanguínea na ala esquerda do Partido Democrata para pôr fim às malfeitorias de Israel. Quer dizer: conta com Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Alexandria Ocasio-Cortez, entre outros. Quer dizer: conta com os representantes de um socialismo paleolítico e com a nova aristocracia woke. A esperança nos primeiros não me surpreende excessivamente. Agora, a confiança depositada na aristocracia woke causa-me uma certa admiração. Saberá ele de quem se trata? Não verá ele aqui uma contradição? Não perceberá ele que aquela gente não só é incapaz de resolver qualquer detalhe do conflito entre Israel e o Hamas como isso em nada lhe interessa, preocupada que está na cruzada de um neo-macarthismo de sinal contrário, com os seus rituais próprios e a sua novilíngua florescente? Mas, mais uma vez, talvez Miguel Sousa Tavares nos possa dar algumas pistas sobre como pensa que aquela gente pode contribuir para que o Médio Oriente em geral se transforme num oásis de paz neste mundo transtornado.

Ou talvez não. Porque ele genuinamente acredita que Israel busca algo como a “solução final” que os nazis conceberam para os judeus – só que desta vez tendo por objecto os palestinianos. Ou, pelo menos, julga a hipótese suficientemente verosímil para se permitir enunciá-la. E aqui, declaradamente, já saímos para fora de qualquer patamar de racionalidade e entramos no delírio puro e simples. E seria necessário investigar os fundamentos psíquicos de um tal ódio a Israel, eventualmente recorrendo ao arsenal das interpretações mais tradicionais, coisa que não tenho nem competência nem apetência para fazer.

Comecei o artigo mencionando a formidável incipiência e a quase infantilidade das considerações de Miguel Sousa Tavares sobre a literatura. Mas isso não obstava, em princípio, que ele não fosse capaz de escrever, no campo que escolheu, romances legíveis e apreciáveis. Há casos extraordinários assim. Acontece, no entanto, que o género romanesco que Miguel Sousa Tavares privilegia é o romance histórico. Ora, um homem que compara Israel à Alemanha nazi não se limita a oferecer-nos uma analogia grotesca. Mostra, para lá da sombra de uma dúvida, que aterradoramente lhe falta qualquer sensibilidade para a história e que é capaz de dizer os mais colossais disparates no mais grave e assertivo dos modos. É forçoso concluir que o género literário em que se propôs triunfar não é compatível com a forma da sua mente. Isso, no entanto, é, apesar de tudo, de pouca importância. Continuasse ele a escrever os seus romances sem se dedicar a chamar nazis aos habitantes de um pequeno país que nem a extensão do Alentejo tem e que lutam pela sua sobrevivência e o que se lhe pode legitimamente pedir seria amplamente satisfeito.