“Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.”
“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”
Constituição da República Portuguesa
A erosão do sistema de Justiça em Portugal é evidente. Esta situação corresponde a um dano grave na organização democrática do regime, abrindo portas a todas as formas de ataque e à desconfiança dos Portugueses. Não há democracia sem um sistema justo de Justiça. Todavia, são muitos os que descreem dela.
Continuamos a ser um país com uma Justiça lenta e que gera dúvidas sérias sobre a sua efetiva independência. Aliás, esta circunstância é apontada por diversas organizações internacionais como fator inibidor de desenvolvimento, crescimento e confiança em Portugal.
Ao longo dos últimos séculos, organizaram-se sistemas públicos de Justiça de acordo com uma institucionalização da separação dos poderes do Estado em três ramos: legislativo, executivo e judicial. Determinou-se, constitucionalmente, a independência do Sistema de Justiça, tornando-o num sistema público – os tribunais privados, a justiça privada – justiça de acordo com a classe social e/ou estatuto – foi posta de parte.
Ao contrário dos tribunais do Antigo Regime ou da Idade Média, o desenvolvimento de monarquias constitucionais na Idade Moderna e a afirmação de regimes democráticos republicanos levaram à afirmação do conceito de cidadania como igualdade face à lei.
Hoje, os cidadãos são todos iguais face à lei? Os mais desfavorecidos têm o mesmo e justo acesso ao sistema que os mais abonados? As decisões são proferidas com imparcialidade? Questões de género, pertença partidária, protagonismo público, estatuto social e económico estão a condicionar, positiva ou negativamente, decisões judiciais? Até onde vai o livre arbítrio dos juízes?
Muitas situações têm lançado dúvidas pertinentes sobre o sistema português de Justiça e as respostas às questões colocadas não nos deixam tranquilos.
Repare-se no sistema de protagonistas, na organização dos tribunais e no contexto.
Começando pelos protagonistas, quem são, sociologicamente, hoje, os juízes, os magistrados do Ministério Público e advogados? Qual a sua formação e preparação para a administração da Justiça?
Juízes e procuradores do Ministério Público correspondem a duas carreiras diferentes. Mas nem sempre – começava-se a carreira de magistrado pelo Ministério Público e ascendia-se a juiz. Foi assim durante 150 anos, até ao 25 de Abril de 1974. Nesse período da nossa organização judiciária, a tensão entre magistrados do Ministério Público e da Magistratura Judicial era quase nula – a carreira de magistratura era a mesma, os papéis é que eram diferentes. Desde que se separaram as magistraturas, apesar da decisão ter sido considerada de grande racionalidade, paulatinamente gerou-se um registo de competição ,quando não de conflituosidade, entre as duas magistraturas, com cada uma a querer afirmar o ascendente do seu poder. Que esta situação existe é do conhecimento público e reflete-se, até, de forma inaceitável, nos termos discursivos usados por magistrados judiciais e do Ministério Público em peças que constam de processos mais ou menos mediáticos.
Entretanto, em nome da autonomia e independência dos magistrados, as remunerações dos juízes e procuradores da república são significativamente superiores à média da administração pública e das remunerações dos Portugueses em geral. Vindo a maior parte dos magistrados da classe média, este estatuto remuneratório, num país onde o ordenado médio não chega a mil euros, dá-lhes uma confiança própria reforçada, para a qual contribui também o estatuto da sua inamovibilidade. Concorre, ainda, para a afirmação da postura dos magistrados, a educação geral e especial recebida e a sua cultura geral. Se a formação tivesse sido de qualidade indiscutível, cada magistrado saberia, na relação entre pares e com as partes e o público em geral, como se comportar. Presume-se que não será, amiúde, o caso, pois há evidências de atitudes que extravasam a sobriedade recomendável no desempenho de funções de tão elevada responsabilidade, como é a de administrar a Justiça ao caso concreto ou pronunciar-se, no caso dos tribunais superiores, sobre a conformidade da decisão tomada. As dinâmicas mediáticas, que transformaram magistrados em estrelas comunicacionais, não ajudam ao recato devido à função. Há, inclusive, aqueles e aquelas que, face ao poder detido, à sua visibilidade e à erosão e degradação da reputação da função política (que a todos nós deve preocupar, pois não há tarefa mais nobre que a de servir enquanto representantes eleitos os concidadãos), consideram que a função judicial é uma forma de poder com capacidade ou mesmo dever de intervenção no processo político, seja por ação seja por omissão.
Claro que não se pode generalizar este cenário. Há magistrados que merecem toda a confiança e são baluarte da função judicial, de forma isenta e competente.
Também advogados, a representar os interesses em presença, são elemento fundamental do sistema de Justiça. Atualmente, parte do patrocínio judiciário está nas mãos de grandes escritórios de advogados, que recrutam os melhores alunos das faculdades de Direito mais prestigiadas (enquanto os juízes e procuradores do Ministério Público, habitualmente, se recrutam entre aqueles que são médio/bons destas ou de outras universidades). Sobrevivem, apesar de tudo, escritórios médios e pequenos e advogados por conta própria. As condições financeiras de exercício da função nem sempre são as melhores para a maior parte deles, enquanto, no que respeita aos cidadãos, os grandes escritórios só são acessíveis a bolsas bem recheadas. Todos os advogados estão expostos ao circo mediático quando os processos nos quais estão envolvidos são relativos a figuras públicas de primeiro plano.
E tanto o sistema judicial público como a advocacia usam hoje a comunicação social – tal como esta os usa – para uma contenda no espaço público, com o objetivo de defender “narrativas” que pretendem influenciar o processo judicial: há os bons, os maus e os vilões. E quando as narrativas tomam conta da opinião pública, torna-se muito difícil, independentemente das decisões judiciais proferidas, conseguir que os visados prossigam as suas vidas sem que os rótulos que lhes colaram os acompanhem.
No que se refere aos arguidos de processos mediáticos, não ignorando a transformação das dinâmicas processuais em espetáculos mediáticos, usam a esfera pública, como os outros protagonistas dos processos, para transmitir posições, mensagens, narrativas.
A certa altura, já não importam os processos, só quem está de que lado, o que interessa é a lei do mais forte e a história em que se acredita. É o regresso à justiça privada, aquela que as democracias quiseram evitar. E todos contribuem, infelizmente, para esta situação, desde os juízes, ao Ministério Público, ao poder político, aos arguidos, à comunicação social, aos advogados. Depois, as redes sociais lançam os rastilhos que incendeiam a opinião pública.
Atualmente, os cidadãos em geral pensam muitas vezes antes de recorrer a um tribunal e temem ser colocados num banco do mesmo. A duração interminável dos processos retira capacidade à maior parte dos Portugueses de sustentar uma lide judicial, a excessiva personalização dos julgamentos por parte dos juízes corresponde a uma roleta russa no que respeita a decisões. Por exemplo, creio haver poucas dúvidas sobre o sentido muito diferente das decisões instrutórias que respeitam à Operação Marquês, fossem tomadas por Ivo Rosa ou Carlos Alexandre.
Entretanto, a organização dos tribunais portugueses, em geral, é um pesadelo. Pobre cidadão que se deixa enredar nas suas malhas! Lembro-me de um amigo, agora de proveta idade, que passou os últimos 25 anos a sonhar com o dia em que poderia receber abastada quantia que iria mudar a sua vida… Até agora, não há decisão! Quantos e quantos casos não conhecemos, sequestrando a sociedade portuguesa, emperrando a vida das famílias, gerando fortes contrariedades às empresas, portuguesas e estrangeiras.
A responsabilidade nesta matéria é repartida entre o poder judicial, o poder executivo e o poder legislativo – não conseguem resolver as dificuldades do sistema e esta situação acompanha-nos há décadas. Claro que já houve reformas e tentativas de reformas. Mas a ausência de consensos políticos estruturais – nesta como noutras matérias – tem impedido a possibilidade de ultrapassar divergências em ordem ao bem comum.
O atual contexto é preocupante. Os movimentos políticos extremistas, nomeadamente, de Direita, tiram partido das incongruências da Justiça portuguesa, como mais um sinal da falência do regime democrático. O Partido Socialista e o Governo insistem, que “à política o que é da política e à Justiça o que é da Justiça”. Só não se percebe é onde fica a política da Justiça. O PSD, na sua vontade de colocar mais cidadãos indicados pelos políticos nas estruturas superiores das magistraturas, parece não confiar no autogoverno do sistema de Justiça. A comunicação social, entre as fugas do segredo de justiça e as investigações paralelas, os fogachos mediáticos e as manchetes tonitruantes, contribui para a descredibilização do sistema, assim como as falsidades, ampliações desmedidas, julgamentos públicos feitos através das redes sociais.
Concluindo, precisa-se melhorar as dinâmicas de educação para a Justiça, apesar dos efeitos só ocorrerem no médio e longo prazo. Melhorar a formação dos protagonistas do sistema de Justiça, dos agentes da comunicação social, dos responsáveis políticos. Educação para a Justiça desde o ensino básico, para todos os cidadãos. Educação que faça interiorizar as palavras da Constituição que refiro no início do texto – é que sem independência dos tribunais, aplicação célere da lei e equidade na sua aplicação, a democracia perde um dos seus pilares fundamentais.